Confesso que a primeira vez que assisti “A vida em si”, fiz algumas pausas e achei difícil acompanhar o enredo nos primeiros minutos.
O filme não é tão fluido como os convencionais, tem um ritmo próprio, mais ou menos como os movimentos da vida (tem momentos em que dá uma agarrada, outros que a gente se pergunta: “o que está acontecendo, afinal?”).
Assim como a vida, “A vida em si” faz reverberar emoções muito variadas no telespectador.
O ritmo e o formato não linear fazem todo sentido com a proposta que a película veicula, o que só é possível entender depois, nos últimos capítulos.
“La vida mesma”, traduzido como “A vida em si” é um filme sobre lealdade, cumplicidade, conexões, amores, amizades, e também sobre ciúmes, insegurança…
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E também sobre o fato doloroso da existência, da impermanência e de guinadas surpreendentes – pode estar tudo maravilhoso e minutos depois a vida pode se transformar em desespero e sofrimento.
Acidentes. Fatos inesperados. Mortes inevitáveis e suicídios (quase) evitáveis.
O amor em A Vida em Si
![amor em a vida em si](https://fabianateixeirapsi.com/wp-content/uploads/2021/02/1-1024x590.jpg)
No meio de tanta dor, brota o amor.
O movimento das narrativas em “A vida em si” também é bem semelhante à música de amor inserida no álbum melancólico de Bob Dylan.
O cantor tem um espaço emblemático nesta história, por ele mesmo, pelo seu álbum mencionado e por nomear a personagem Dylan.
Acho que essa é a grande chave para pensar esse enredo; no meio de tanta dor, brota o amor, na mesma esquina chorosa e trágica em que anos antes a vida se desestabilizou.
O amor, em seu sentido mais amplo, de uma força poderosa para manter conexões e reverberar em outras gerações, surge como a canção no álbum de Dylan: como uma grande surpresa e que modifica tanto a vida.
O deslocamento temporal também nos remete a pensar na noção de “herança psíquica”, sobre tentar compreender se o que vivemos como realidade também não é uma espécie de efeito de outras experiências, de outras identificações e referências provenientes de nossa linhagem familiar.
Embora aponte para a repetição inevitável, também deixa espaço para a invenção, para a diferença.
Lindamente o filme narrado por Elena, a quarta geração apresentada no enredo, ilustra como fatos e afetos vivenciados antes de nossos nascimentos podem reverberar em nossas vidas…
Nos faz pensar na inexorabilidade da morte, e no quanto lutos sobrepostos interferem no desenvolvimento das pessoas e afetam os modos de viver e relacionar.
Vivendo como os nossos pais: a repetição inevitável
“A vida em si” me faz associar à voz de Elis Regina cantando: “Ainda somos o mesmo e vivemos como nossos pais”.
Temos no enredo várias gerações de mulheres que encontram o amor como compartilhamento e uma via de continuidade. O amor é narrado como nobre, sublime, acolhedor e conector.
Abby e Will, assim como Dylan e Rodrigo repetem essa experiência de parceria amorosa tão validada por seus pais e avós que reverberam no livro/discurso de Elena.
Uma conexão tão profunda que faz com que Will não consiga viver sem Abby e que Dylan e Rodrigo não passem sequer uma noite separados por décadas, desde o dia que se conheceram.
Conexões e perdas aparecem em formatos de repetições, assim como os acidentes: o primeiro deixa Abby órfã e o segundo deixa Dylan órfã, nos remetendo ainda a pensar nos constantes ciclos vida-morte e vida pelos quais todos passamos.
O nascimento de Abby coincide com a trágica morte de sua mãe, que de certo modo culmina no suicídio de seu pai.
Rodrigo estava presente na cena e de certo modo até contribuiu com ela, obviamente sem dolo.
Na sequência Abby enfrenta a morte da avó e do seu cão.
Precisamos ainda lidar com a morte de Isabel. Abby repete a história de sua mãe, crescendo sem seus pais.
Aprofundando na análise do filme
Pensando com Gutfreind (2010), por meio das histórias de vida, podemos considerar a herança psíquica como uma espécie de “rascunho” através do qual uma nova história será escrita.
Neste novo rascunho, vamos escrevendo e traçando novas conexões: “a narrativa é a ponte entre o eu e o outro (pai, mãe, substitutos) que nos fará sentir-nos vivos verdadeiramente”. (GUTFREIND, 2010, p. 30)
Em “A vida em si” Elena compartilha conosco a história de seus antepassados, que já passou de rascunho para um livro publicado.
Narrar, traduzir afetos em palavras e textos é também um modo de inscrição. De registro; “Eles acharam a música de amor, no álbum melancólico de nossa família” (Elena).
De acordo com Vasconcelos e Lima (2015), podemos pensar a narratividade como um modo de lidar com o passado e produzir um presente inédito.
O filme deixa clara a mensagem de que “todo narrador confiável é a vida em si!”.
Fato é que embora a veracidade de toda narrativa seja questionável, já que a verdade é sempre subjetiva, parcial e provisória, compartilhá-la pode ser elaborar e dar prosseguimento, amorosamente.
Pela tese de Abby sobre narradores confiáveis, sabemos que nas narrativas há alinhavos, continuidade, interpretações e um quanto de elaboração e invenção. Assim é.
É a vida mesmo, a vida em si.
Referências
GUTFREIND, Celso. Narrar, ser pai, ser mãe & outros ensaios sobre parentalidade. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. SILVA, M.C.P. A herança psíquica na clínica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
VASCONCELOS, A.T.N., LIMA, M.C.P. Considerações psicanalíticas sobre a herança psíquica: uma revisão de literatura.Cad. Psicanál. CPRJ, Rio de Janeiro, v. 37, n. 32, p. 85-103 Junho de 2015.