Todos têm suas próprias razões

Todos têm suas próprias razões

Se eu tivesse que escolher uma única frase entre as quase 100 canções da Legião seria essa: “Todos têm suas próprias razões”, da música Eu era um lobisomem juvenil*. Eu realmente compactuo com a proposta de que existem razões, motivos e justificativas para as ações de cada um, por mais bizarras que elas possam parecer. Por isso adoro tanto ler biografias e ouvir as histórias de vida das pessoas.

Além de ler e escutar também gosto de me surpreender com as conexões que elas fazem entre uma experiência e outra, na tentativa de construir ou criar certa construção de por que se é assim, ou como a vida chegou a este ponto. Sem falar no fato de que olhando bem de perto, a vida de ninguém foi um jardim de rosas.

Quando a gente se debruça a pensar no “lado B”, nos bastidores, geralmente nos surpreendemos bastante. Sobre as dores e angústias alheias, sobre os reais impactos das consequências mais subjetivas, nada ou muito pouco, sabemos. Na prática, isto não é tão simples. Por isso resolvi esboçar este texto.

Cada um tem suas próprias razões. O que isso significa?

Quando a gente aceita o fato de que cada um tem razões e motivos para ser quem é, fazer o que faz, ter os objetivos que tem, não significa que a gente concorde, relativize ou desmereça.  Acho que nunca é demais lembrar a diferença entre entender e concordar/aceitar e desculpar algumas coisas. 

Quando entendo, não significa que eu compactue, que queira fazer parte, ser participante. Mas entendo que cada pessoa tenha suas razões para fazer o que faz, para gostar do que gosta e está tudo bem.

Daí eu fazer parte disso, parabenizar a pessoa, nutrir afeto por ela, ou algo assim, é outra coisa. Quando isso transborda o campo individual e reverbera no coletivo fica mais explícita a diferença. Se um discurso implica em romper pactos éticos que envolvem vidas alheias, se estremece o campo da coletividade, aqui tem uma lacuna gigante. 

Quando um comentário deixa de ser opinião e incita a violência, desencoraja as pessoas a tomarem uma vacina, a cumprirem pactos que estabeleceram com outras pessoas a coisa vai tomando uma proporção maior. (Não custa lembrar que discurso de ódio não é opinião e ficar repassando Fake News não seja irrelevante, ainda que você tenha suas razões).

Lendo algumas postagens aqui na internet, a ideia de que cada um tenha as próprias razões parece difícil no nosso contexto, porque implica inevitavelmente em julgar menos, em não deduzir e não avaliar a vida alheia. Inclusive, em tentar entender como as pessoas “passam pano” para quem vai tolindo sua autonomia e de alguma forma capturando seus direitos.

Às vezes, tentar entender é muito difícil, porque algumas atitudes parecem carecer de lógica básica, mas olhando com cuidado deve haver uma conexão com o fato. Há uma história de vida por traz de toda postagem, de todo comentário.

E quando isso é muito bizarro geralmente há também pouca reflexão, muita rigidez e um automatismo de massa, que impede questionamentos básicos e imprescindíveis para uma certa liberdade e leveza. Ainda mais para mudanças e transformações. E isso causa certo impasse em escrever e no modo como seremos interpretados.

Assim, seja lá o que for que você esteja pensando agora sobre quem quer que seja… Talvez você não tenha nem uma pequena noção do que de fato se trate… E as redes sociais confundem bem essas questões. 

O quanto o outro é feliz, está satisfeito, planeja, espera, se movimenta em busca de… Não sabemos. A razão de cada um mostrar o que mostra, fazer o que faz e silenciar ou argumentar o que quer que seja, salvo em raras exceções, também não nos será revelada. Até porque nem sempre a própria pessoa sabe suas motivações, ainda que acredite que saiba.

O mais bacana disso tudo, é lembrar da nossa instância inconsciente, essa da qual também não conhecemos tanto assim, não sem antes nos enveredarmos por um significativo trabalho psíquico.

Do inconsciente, emergem muitos de nossos motivos e se nem nós mesmos podemos defendê-los em quaisquer circunstâncias, por que tanto atrevimento em julgar o  alheio?  

E assim surgem as intolerâncias…

Diante destes tensos discursos homofóbicos, transfóbicos, misóginos, machistas, antivax, acho fundamental esse esclarecimento. Entender razões me fazem precisar argumentar e dizer de forma bem esclarecida o quanto não concordo – e não farei parte disso.

Ainda que no particular, no caso a caso você tenha suas razões e eu possa até compreendê-las. É importante entrar em contato com as próprias razões para avançarmos enquanto humanidade. 

Quando paro pra ler as postagens no Insta tendo a tentar escutar além das palavras, vejo as contradições, os preconceitos, a incoerência dos discursos que ainda que cercados de  palavras vitais, propagam uma vibe mortífera e incoerente. 

Sim, entendo que todos tenham suas próprias razões

Mas precisamos de um pacto coletivo, ético, respeitoso e pacífico. 

Se vai ferir, maltratar, adoecer, desrespeitar o outro lembre-se que todos têm suas próprias razões. Você também. Entenda as suas, depois se for o caso, passe adiante.

* trecho de “Eu era um lobisomem juvenil”, do álbum As quatro estações.

**“Quem insiste em julgar os outros, sempre tem alguma coisa pra esconder”

Repetições e criações: repetimos o mesmo ou permitimos o aparecimento do inédito?

Repetições e criações

Depois de um percurso pela Psicanálise começamos a ver certa obviedade em algumas situações e nos esquecemos de que nem todas as pessoas envolvidas podem estar percebendo da mesma forma.

De um modo geral, escuto que seria mais interessante ou mais necessário que o “livre arbítrio” desse conta de promover as “escolhas saudáveis”, que “deveria” ser assim “sempre”, sobretudo quando se pensa em escolhas conscientes e racionais. A bizarra proposta de “consertar” tudo, motivar a si mesmo, desde que você gerencie suas escolhas. Sabemos que a castração é um impeditivo e a proposta de tal felicidade não se cumpre, como bem advertido por Freud.

Quando paramos para olhar de perto, desde os primórdios da Psicanálise começamos a lidar com o fato inevitável de reconhecer que não é bem assim que acontece. As pessoas repetem as insatisfações provenientes de seus registros infantis, sem querer e mesmo sem saber.

O que significa repetição na psicanálise?

Como já bem dito por Freud, repetem, ainda que sem saber que o fazem. Estranham, mas permanecem na situação, porque é ao mesmo tempo familiar – estranha, o que faz querer sair e ficar. Por vezes, a ambivalência se dá na mesma proporção, paralisando os movimentos desejantes e deixando a sensação de estagnação.

Penso que principalmente no quesito “compulsão à repetição”, aos leigos chama atenção a questão “como podemos nos enveredar por situações que nos fazem mal?”, “se já aconteceu tal coisa tantas vezes, o que está esperando?” e por ai vai … Observando mais de perto, percebemos que inúmeras situações nos fazem bem e mal ao mesmo tempo. Há um ganho proveniente do reconhecimento da familiaridade, do conforto, do conhecido, do já visto.

Pois bem, o inconsciente e seus trilhamentos nos direcionam para as situações familiares, que combinam com nosso repertório, seja ele qual for. Até sermos atravessados pelas palavras provenientes das produções discursivas realizadas no divã. Aí o capítulo da história passa a ser bem diferente.

Passa a ser difícil permanecer em situações que nos trazem a sensação de já saber o final do filme, quando é demasiadamente angustiante, torpe ou sem emoções que façam valer a pena. Esperar para constatar a frustração já sinalizada, ou, reconhecer o sofrimento, o mal-estar e a repetição, também tem efeitos. Um deles pode ser o da impossibilidade em continuar o processo repetitivo e paralisante.

Lendo Alain de Botton, senti de compartilhar um fragmento no qual o autor ilustra tão lindamente estes aspectos, que dialoga muito oportunamente com estas considerações:

“Acreditamos estar buscando a felicidade no amor mas o que queremos é familiaridade.  Tentamos recriar em nossos relacionamentos adultos aqueles exatos sentimentos que conhecíamos tão bem na infância – e que raras vezes se limitavam a ternura e afeto. 

Recordar, repetir e elaborar

O amor que a maioria de nós experimentou bem cedo vinha misturado a outras dinâmicas mais destrutivas: o sentimento de querer ajudar um adulto fora de controle, de privação de afeto de um dos pais ou medo de sua raiva, ou de não ter segurança suficiente para comunicar nossos desejos mais complicados. […] Saímos em busca de pessoas mais interessantes, não por causa da crença de que a vida com elas será mais harmoniosa, mas pela sensação inconsciente de que, de uma forma tranquilizadora, elas vão parecer familiares em seus padrões de frustração”. ( BOTTON, 2017, p. 55)

Botton, nos lembra que quando tudo nos parece equilibrado demais e tranquilo demais corremos o risco de achar “estranho” e “imerecido”. A partir daí e em função disso, vamos produzindo os mais variados arranjos, que costumam mudar de direção conforme a experiência analítica. Há um certo trevo no caminho em que se escolhe quem prevalece: o velho e paralisante aspecto mortífero do gozo ou os movimentos sublimatórios, desejantes e vibrantes que nos impulsionam?

A repetição ou o trabalho criativo de inaugurar o inédito? Por isso, costumamos dizer que a análise não tem preço e sim valor. Um valor sempre muito singular e reconhecido por quem o banca. Um valor que está em prol da vida, que possibilita bancar o desejo.

Dessa forma, é oportuno e fundamental lembrar a função do processo psicanalítico, em seus ancoramentos nos pressupostos freudianos em “recordar, repetir e elaborar”, via transferência. Após um percurso analítico, não estaremos prontos, acabados ou curados (de nós mesmos, sobretudo). 

Mas estamos mais apropriados de nossos desejos, que nos sustentam em sair da sala de cinema ou parar o filme quando a gente já sabe que não quer, não pode ou não faz bem continuar investindo mais afetos e tempo no enredo.  É preciso reconhecer a hora de se retirar. Bom mesmo é quando o filme é tão bom que literalmente a gente paga para ver de novo. E ainda quer levar alguém junto, para compartilhar a experiência. Quando é possível gargalhar de novo, chorar de tanto rir, quando o riso é frouxo, é fácil… ou chorar de emoção, quando o choro funciona como espécie de bálsamo para a alma. A gente até fica sentado no cinema com os olhos lacrimejantes, vendo as letras subirem.

O desafio está justamente em reconhecer os efeitos psíquicos e decidir a hora de ir ou ficar… e seja qual for a decisão, que seja sem vacilo e sem dor.

Como já cantou Milton Nascimento, tão lindamente na canção composta por Telo Borges, intitulada “Voa bicho”: “Como um bicho que sai do ninho, sem vacilo nem dor na minha vez […] andorinha faz a canção”.

Referências

BOTTON, Alain. O curso do amor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

As flores de plástico não morrem

As flores de plástico não morrem

Uma afirmação que sempre me intrigou foi: “que linda, parece artificial”. Já ouvi muitas vezes essa expressão, sobretudo em relação às flores, pets e afins. A ideia de que são tão belos que nem parecem de verdade me parece curiosa … No entanto, sempre pensei o oposto, que o mais interessante e admirável fosse justamente o que parecesse mais verdadeiro, com toda a complexidade que isso comporta.

Para mim, as fores artificiais quando são bonitas são justamente porque são parecidas com as naturais e não o contrário. Verdadeira, natural, passageira, transitória, perecível, autêntica, seja qual for a palavra … Para mim, parece mais interessante que artificial. Penso isso muito antes das redes sociais, que rende uma outra reflexão nessa linha do artificial, dos filtros, etc.

Tal reflexão era uma questão infantil para mim. Afinal como é isso do lindo ser o artificial? Anos depois, para minha grande surpresa e admiração descobri em “Sobre a transitoriedade” Freud questionando justamente esta questão. O psicanalista indagava se uma flor seria mais bela por seu aspecto transitório, ou se o fato de se deteriorar e mesmo desaparecer com o tempo, diminuiria seu valor.

Leia também: Um breve papo com Rubem Alves e Clarissa Estés sobre amores possíveis

Há beleza no artificial?

“Flores”, a famosa música do Titãs, título bem oportuno para este questionamento, sugere que as flores, que estão por todo lado, nos lembram a finitude: afinal, nesta canção, “as flores têm cheiro de morte”.

As flores estão por toda parte: em cima do telhado, debaixo do travesseiro, “há flores em
tudo que eu vejo”. A finitude, embora tantas vezes negada, está por aí o tempo todo. A vida inteira, por todos os cantos que a natureza nos alcança e o artificial não dá conta de tamponar a finitude. Só quem se dá ao luxo de parar vez por outra no aqui e agora vai se dar conta disso.

Parar para contemplar a natureza, seus ciclos, seus movimentos, transformações,
encerramentos e nascimentos. Parar para olhar pode ser aversivo e interessante ao mesmo tempo, dependendo do destino que daremos a tal constatação. Pode ser sofrer pelo fato de que todos os ciclos se concluem, seja pela beleza e grandiosidade que há neste mesmo fato.

“A dor vai curar essas lástimas/ o soro tem gosto de lágrimas/ as flores tem cheiro de morte / a dor vai fechar esses cortes”. Faremos nossos percursos com lágrimas, dores e finitudes, com mais ou menos filtros, com mais constatação ou mais fuga, cortes mais reais ou mais simbólicos, dependendo de nossos recursos psíquicos diante das circunstâncias.

As lágrimas fazem parte também, e requer uma boa dose de disposição para continuar insistindo em reprimi-las. As lágrimas podem ter poder curativo e restaurador, quando fazem parte do ciclo das dores, transformações e restaurações. Dores, lágrimas, cortes, cicatrizações, espécies de tatuagens que permanecerão. E está tudo bem.

De forma mais explícita ou oculta a questão permanece: o que de fato vale a pena, cheirar e regar as “flores vivas”? ou permanecer com a sensação de que elas podem ser eternas pelo fato de que foram compradas por um alto custo numa loja de departamento? Qual encontro vale mais a pena? O que você percebe e pode encarar a pessoa sem filtro, com todos os seus impasses e dificuldades ou os “filtrados” pelo Instagran? O que vale mais a pena para você? Alimentar e contemplar os aspectos falíveis e transitórios ou alimentar a ilusão de uma vida artificial?

A beleza incomparável do natural

Eu permaneço com a resposta de Freud e com a da Natureza, com seus ciclos, suas estações, seus movimentos. As flores de plástico não morrem, mas não cheiram, não abrem, não murcham, não me recordam a grandiosidade que há nisso tudo.

Freud, sempre oportuno, nos disse que: “O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos.

Quanto à beleza da natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna […] Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela”. (FREUD, 1916[1915]/1996, p.318)

A minha escolha continua sendo pelas flores vivas. As flores de plástico não morrem porque não têm vida. Beleza sem vida vale alguma coisa? Que possamos chorar pelo que vale a pena, não por ter “despedaçado as flores que estão no canteiro”.

Referências:

FREUD, S. (1916 [1915]). Sobre a transitoriedade. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
MIKLOS, P., BRITO, S., GAVIN, C., BELLOTTO, T. Flores. Õ blésq blom. WEA, 1989.

Um breve papo com Rubem Alves e Clarissa Estés sobre amores possíveis

Um breve papo com Rubem Alves e Clarissa Estés sobre amores possíveis

Com a proximidade do dia dos namorados, venho observando as movimentações em torno do tema nas redes sociais. De repente, o amor voltou a ser lindo, discursado pelas mesmas pessoas que veiculam diariamente as políticas de extermínio e agressão. As postagens patrocinadas começam a aparecer, repletas de produtos com as mais variadas formatações de “eu te amo”. Em tempos líquidos, nem todos os relacionamentos seguem a tendência da pós-modernidade, embora a fluidez das mudanças de status nos perfis possam sugerir que a questão seja mais complexa.

Para além das tendências comerciais, dos apelos e dos resquícios do amor romântico que reverberam em todos nós, relendo Clarissa Estés (2018) me senti provocada a compartilhar sobre os custos energéticos envolvidos nos relacionamentos, e penso ser bem oportuno falar disso nesta data.

Para a autora, é importante pensarmos no quanto as parcerias amorosas também nos “custam” em: “tempo, energia, observação, atenção, indecisão, sugestões, instruções, ensinamentos, treinos”. Ela nos convida a refletir sobre o quanto há a necessidade de investimentos e retornos, bem como nos perigos em torno dos “saques a descoberto de uma poupança psíquica” (ESTÉS, 2018, p. 305).

É um outro modo de pensarmos a velha história de equilíbrio entre o dar e o receber, pois a energia, o tempo, o reconhecimento e tudo mais fazem parte de um movimento que precisa ser ofertado e recebido, investido e reposto, precisa de fluidez, de circular, de respirar.  É importante não se perder de si, no processo de incluir o outro.

Uma crônica que inspira esta discussão

A respeito destes movimentos nas parcerias amorosas, acho importante chamar para a conversa a interessante metáfora de Rubem Alves que ilustra configurações de parcerias diferentes e sugere ser possível vivenciar experiências amorosas mais empáticas e generosas, sem se perder de si mesmo. “Tênis X Frescobol” é uma das minhas crônicas favoritas do autor e trata do reconhecimento de uma conexão possível, uma espécie de “jogo amoroso”, que promove parceria e fluidez, reverberando em diversas outras reciprocidades e permanências.

Embora o texto de Rubem Alves tenha sido escrito focado nos casamentos, penso que suas reflexões são oportunas para diversas relações humanas, no campo do coletivo também. O autor nos conta que há relações competitivas, que se assemelham ao jogo de tênis.

Nestas, os objetivos envolvem ganhar e derrotar o adversário e para isso, as estratégias envolvem cortadas e desestabilizações, feitas a partir de considerar os pontos mais fragilizados do outro. Assim, o lugar do parceiro, também “adversário” é este: o de possibilitar a vitória.

Sem o perdedor não há ganhador e para ganhar é preciso “cortar”. Neste caso, vencer parece bem importante, aquela sensação efêmera e específica de triunfo, tão almejada na contemporaneidade. Não se sabe ao certo para que serve, mas tanta gente corre desenfreada buscando cruzar essa linha de chegada. Aqui, a vitória também pode vir acompanhada de  solidão,  já que ao outro o lugar ofertado é o de utilidade e conveniência.

Fico pensando no quanto as redes sociais têm feito esta função – a de uma quadra de tênis. O tempo todo alguém em evidência, vitorioso, com a sensação de superioridade. Para isso, tantas pessoas se sentindo desconsideradas, cortadas, silenciadas. Precisando sair do jogo, literalmente perdendo espaço. Pensando nos relacionamentos, exaurida, sufocada, clamando para que algum juiz interrompa o jogo para que possa respirar novamente.

De alguma forma a pandemia nos trouxe uma rotina diferente que facilitou olhar para isso tudo, para os espaços, para as cortadas, para as inclusões e exclusões. Pesado, incômodo, difícil digerir. As promessas de revisão dos modos de posicionamento no mundo e diante do outro, tão propagadas na chegada da COVID 19, se revelaram impossíveis. Na prática, o isolamento é de outra ordem. Voltando para a metáfora de Alves (2008), parece que temos tantas quadras, redes e competições imaginárias e ocultadas…

Amores possíveis

Contudo, este texto é em defesa das parcerias possíveis, saudáveis, revigorantes, que se assemelham ao jogo de frescobol. Neste jogo, objetivo é um jogo fluido, de fato de parceria, com o objetivo de ajustar os desvios da bola e mantê-la em movimento, um movimento sustentado pelas duas partes, com interesse e reciprocidade.

Segundo Rubem Alves, neste caso: “Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha” (ALVES, 2008, p. 115). Convidando Estés (2008) para o diálogo, se uma parte investe muita energia na cortada, rapidamente a outra ficará sem recursos para investir. Se uma parte “falir” o jogo não prossegue. O frescobol nos faz pensar no quanto a tarefa de reinvestir e revigorar precisa fazer parte do processo. 

Em tempos de Bauman, Lipovetsky e Han, num mundo em que valoriza o desempenho, a performance e a vitória, pensar em equilíbrio de energia, em reciprocidade nas parcerias amorosas parece uma transgressão e tanto. Olhando bem de perto, os relacionamentos no estilo frescobol não costumam aparecer, sobretudo por não estarem na lógica da vitória ou da sociedade do espetáculo. Não por acaso, estes não precisam de validação externa, pois nutre-se em si mesmo. Mais importante que mostrar o jogo é de fato brincar durante o jogo, é a experiência em si, a vida ali. O que não parece carecer de curtidas, likes ou comentários. Pode ser um jogo privado ou restrito aos encontros autênticos.

Rubem Alves (2008), também nos sugere pensar nas bolas destes jogos como os sonhos das pessoas. O que andamos fazendo com os sonhos delas? Se é sonho é “coisa delicada, do coração”. Assim, qual é o objetivo em cortá-lo? Destruí-lo ou diminuí-lo?  “Há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam a espreita do momento certo para a cortada. […] O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento.  Aqui, quem ganha sempre perde”(ALVES, 2008, P. 116).

Enquanto humanidade, dada a realidade contemporânea, precisamos avançar muito.  Enlaçar mais e fazer menos “nós”,  fluir, compartilhar e não performar tanto. Quando coletivamente se ganha, o benefício se amplia. Quando só um ganha, que graça tem? Avançar é arriscar a novos modos de existência.

Como nos sugere Han (2020), “Aparentemente temos tudo; só nos falta o essencial, a saber, o mundo […] Perdemos a capacidade de admiração” (HAN, 2020, p. 128). Assim, quem sabe seja a hora de começar a jogar mais frescobol, a correr o risco de viver pela vida em si, com menos filtro e mais energia vital. No final das contas, é o que temos.

Referências

ALVES, Rubem. As melhores crônicas de Rubem Alves. Campinas, SP: Papirus, 2008.

ESTÉS, Clarissa Pínkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

HAN, Byung – Chul. Sociedade do cansaço. Petro´polis: Vozes, 2020.

Novos cenários e perspectivas para os efeitos do “Complexo de Cinderela” no século XXI

Há tempos venho acompanhando discussões em torno das histórias de contos de fadas.

Entendo que as versões narradas podem ser ou não fiéis às histórias milenares, que enaltecem os aspectos fortalecedores, as mensagens subliminares de reconhecimentos e resoluções para os conflitos psíquicos.

Obviamente, não podemos desconsiderar o aspecto da passividade que possa se promover a partir de uma narrativa na qual uma menina protagonista é orientada a esperar com passividade e paciência, que logo mais será “salva” por um príncipe.

A partir do surgimento deste príncipe, tudo parece supostamente solucionado e a vida da protagonista estará configurada numa áurea de felicidade por via de acesso ao casamento, este formato de domesticação do amor romântico.

Sabemos que este suposto final nada mais pode ser que o início de um novo ciclo, que traz inúmeros processos de aprendizados e desafios e não cabe neste formato happy end, não se trata de um ponto de chegada, mas de um fluido acontecer, atravessado por um cotidiano e marcado por uma história de vida.

Na contemporaneidade temos personagens como Valente, temos Malévola, temos os filmes de grande bilheteria que não terminam mais num formato de “felizes para sempre”, como por exemplo em “Como eu era antes de você”.

Nessas três películas que menciono, todas trazem outras saídas para as mulheres, se contrapondo à passividade e à busca pela “solução” do seu desamparo constitucional em outras pessoas.

Esse príncipe idealizado e que não corresponde aos homens reais da vida cotidiana, sobretudo por estas expectativas criadas, não são o objetivo destas personagens que podem inclusive, proporcionar um final feliz a si mesma, sentada sozinha num café em Paris, onde escolheu estar. Ou ainda, insistir no direito de seguir a própria vida, sem precisar compartilhá-la amorosamente, como decidiu Valente.

Sobre o Complexo de Cinderela

Por isso, acho válido relembrarmos o clássico e ainda tão atual livro de Colette Dowling, cuja tese sustenta que o “Complexo de Cinderela” consiste numa espécie de “rede de atitudes e temores profundamente reprimidos que retém as mulheres numa espécie de penumbra e impede-as de utilizarem plenamente seus intelectos e criatividade.

Como Cinderela, as mulheres de hoje ainda esperam por algo externo que venha mudar sua vida.” Colette nos lembra que muitas mulheres ainda aguardam a chegada de seus príncipes, como se pudessem na sequencia, delegar a outra pessoa, o comando e a direção de suas vidas.

Gosto de pensar esta noção de Complexo de Cinderela com as personagens Carrie e Charlote, da Série Sex and the City.

Mulheres inteligentes, independentes e bem sucedidas, às voltas com recorrentes encontros amorosos curiosos e por vezes bizarros, repetidos no afã de encontrar “o cara”.

Espécie de ideal de “salvação” que vem de fora, sobretudo deste homem fictício e idealizado na figura de um príncipe (des) encantado, o lance dos sapatos é bem interessante de pensar como metáfora, em Cinderela e nesta série também.

Contudo, acho que fica um tanto ambivalente o que representam estes sapatos em Sex and the city, afinal. Por um lado, a espera não é passiva, já que Carrie, encantada por sapatos, já comprou o equivalente ao valor monetário de um apartamento.

Embora ela faça as próprias escolhas e não precisa bancar o lugar de princesa que espera essa sapatinho encaixar certinho, sabemos que ela “agarra” num sapatinho azul bem específico, envolvido no seu casamento que não acontece. Haveria então um resquício deste efeito de Cinderla em Carrie, justamente ela, que parece tão “resolvida”, será…

Para Carrie, em especial, seu eleito “ Big” se torna a encarnação deste príncipe que na verdade é tão realista ao ponto de desistir do casamento minutos antes.

Bem como as coisas são, os homens da série também são reais, criam expectativas, se atrapalham, se apaixonam, têm medo e tudo mais que se possa imaginar.

Sex and the City teve grande alcance no público feminino, com seis temporadas e dois filmes.

Acredito que esta série tem a habilidade de reunir os resquícios destes aspectos do imaginário feminino, nestes processos de sedução da “mascarada”, de ser tudo para o outro ao mesmo tempo em que busca amparo neste outro, sobretudo nos homens.

Assim, concomitantemente as personagens nos fazem rir dos desencontros cotidianos e criam espaço para discussão e revisão de tudo isso que nos afeta, direta ou subliminarmente, sem deixar de enaltecer o que penso ser mais interessante que a série veicula: a força da coletividade feminina, que é tão potente nestas quatro amigas.

Uma espécie de bálsamo para todos esses resquícios que nos afetam e ainda não elaboramos, embora sejamos gratas à todas as mulheres que vieram antes, e começaram o trabalho por nós.

Voltando em Colette Dowling, a questão que reverbera para mim diz de como as mulheres embarcam ou desenvolvem este complexo.

A autora nos provoca a refletir sobre uma espécie de mensagem subliminar que nos promete uma espécie de recompensa ao silêncio, à submissão e ao bom comportamento.

Basicamente, ao nos percebermos frágeis, restaria a passividade e a espera, desta suposta salvação que chegaria como espécie de prêmio, trazida por este ser-fora-do cotidiano tão bem representado pelo “Big”, este homem enigmático e bem sucedido, mas que ninguém sabe como chama, nem o que ele faz exatamente.

Como nos príncipes das histórias é um lance meio mágico, que ninguém sabe explicar seu aparecimento. No caso de Big, suas próprias razões também não.

Na prática, nesta semana em que tanto se falou sobre a mulher e o feminino, acho que é hora de parar para avaliar se conseguimos este árduo processo de conciliar tudo que nos foi atribuído. Se precisamos disso e principalmente, se é isso que queremos.

Se estamos inseridas em relacionamentos onde existe equilíbrio entre idealização e realidade, entre dar e receber e sem desperdício de energia,de potencial e se não estamos a desperdiçar nós mesmas, sobretudo.

Não só nossos direitos parecem estar sempre ameaçados de alguma forma, mas nós mesmas quando nos deixamos de lado para buscar esses finais felizes de histórias que ouvimos. Como nos lembra Colete:

 “Nós sabotamos nossa própria originalidade.  Andamos em segunda – evitando as marchas mais potentes que possibilitam maior velocidade – como se tivéssemos sido programadas para fazê-lo. E na realidade o fomos”. 

Em busca da superação

O desafio está sobretudo em encararmos nossos registros inconscientes que permanecem enquanto conciliamos nossos desejos e projetos possíveis, dando espaço a novas criações e invenções.

Enquanto nos enveredemos na ideia de salvarmos a nós mesmas, as forças de compartilhamento podem contribuir com a desestabilização da ilusão de que a salvação está fora.

Que massacrar o amor próprio para criar um lugar para o outro pode ser não só fadado ao fracasso, mas também correr o risco de que isso possa retornar para nós no formato de fúria e intolerância, o que vai na contramão das parcerias (par-seria possível?) pautadas em reciprocidade e respeito.

Não importa qual sapatinho se espera, estamos em tempo de buscar por ele, pagar por ele ou aceitar de presente de uma boa amiga.

Separando o príncipe do sapatinho que ele traz, há mais chances de encontros com pessoas reais.

Sapatinhos, anéis, casas ou o que quer que seja o presente de um “príncipe encantado”, pode ter um alto custo energético, e isso não costuma ser percebido no embrulho.

O sapatinho da cinderela pode envolver uma entrega física, psíquica ou custar a própria vida. Sem a metáfora do encaixe perfeito do sapatinho somos mulheres reais como Carrie e suas amigas.

Mulheres que buscam reciprocidade, compartilhamento e risadas sinceras, mais que finais felizes.

Na dúvida, sabem que tem um colo das amigas antes de mergulhar de volta no mundo lá fora. Sim, existe vida lá fora, muita vida. Mas a nossa relação com o desamparo, a gente resolve internamente.

Com a ajuda das amigas e das analistas.

Referências

DOWLING, Colette. Complexo de Cinderela. São Paulo: Melhoramentos, 1995.

LOVELACE, Amanda. A princesa salva a si mesma neste livro. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

Existe “crise da meia idade”?

Mulher de meia idade olhado para frente

Um dos meus temas favoritos das aulas de Psicologia do Desenvolvimento do adulto era a tal da “meia idade”…

Quando comecei a dar essas aulas eu tinha por volta de 30 anos, o que na ocasião significava distância de uma década até esse marcador de vida.

No entanto, ainda que bem abstratas na minha vida prática naquela ocasião, as propostas de Papalia et al (2006) sobre este assunto me interessavam bastante.

A ideia de pensar a meia idade como um momento de olhar para a frente e para trás, com a possibilidade de avaliação e “correção de rota” sempre me interessou.

Agora, mais de uma década depois, quando eu mesma vou revendo os meus traçados nesta trajetória chamada vida, convido à um olhar para seu próprio percurso, destino e bagagem.

Sabemos que do ponto de vista psicanalítico, o inconsciente é atemporal, não deixando de atualizar registros passados nem diferenciando o antes e o depois.

Os registros e afetos permanecem em nossos arcabouços psíquicos, parando ou não para olharmos para isso. Assim, sempre é tempo de rever o mal-estar camuflado na rotina ou massacrado pela tentativa de negação.

Nada desapareceu, mas talvez a gente pense que sim …

Dessa forma, considero possível um diálogo entre a atemporalidade sustentada pela psicanálise e a noção de meia idade da Psicologia do desenvolvimento.

Afinal, o que é meia idade?

A meia idade, refere-se ao período da vida que coincide com cerca de metade da expectativa de vida, circula em torno de 40 a 50 anos.

Quando penso nessa fase da vida, lembro da personagem Evelyn, de Tomates verdes fritos, que traduzia muito bem o quanto este período diz daquele momento da vida em que você se sente” muito velha para ser jovem, mas ao mesmo tempo, nova demais para ser velha”.

Recentemente descobri que essa frase vem da Clarissa Estés, no seu livro A ciranda das mulheres sábias.

É um momento em que a gente pode se interrogar sobre a metade da vida já vivida e acolher a outra metade que o futuro acena.

A proposta é rever o que de fato podemos considerar como “vida bem vivida”, como foi, o que foi aprendido, perdido, uma espécie de encerramento de um ciclo para que possa se pensar e viver melhor o próximo.

Contudo, há quem interprete que neste momento a metade da vida levou a fase mais interessante e promissora e adota uma atitude temerosa e pessimista perante o que está por vir, vislumbrando assim, pouca ou nenhuma possibilidade de reparação ou mudança.

Obviamente não há receitas, não há mapa da mina e nem estrada das pedras amarelas que possamos seguir.

Mas a perspectiva na qual nos inclinamos para avaliar a trajetória pode fazer muita diferença.

Ela pode inclusive, nos acompanhar quando a fase idosa chegar.

A meia idade e a psicologia

Nesse sentido, a escuta psicológica e psicanalítica podem ajudar bastante no processo.

Pode ser um jeito de dar uma parada e refletir um pouquinho sobre isso tudo, dividindo o peso com alguém imparcial e sem julgamentos.

Na perspectiva da Psicologia do Desenvolvimento podemos pensar que neste período da vida algumas pessoas irão viver a chamada “crise da meia idade”.

Apesar da palavra crise ser associada negativamente em nossa cultura, aqui ela tem um sentido interessante.

Ela dá aquela “sacudida” para que repensemos nossas próprias rotas, quais são as bagagens e suprimentos vamos levando nesta viagem chamada vida.

(Você escolheu seu roteiro pelo desejo? Ou carrega malas pesadas que na verdade são os desejos dos outros, segue a rota que traçaram para você? Pois é, sobretudo os mapas, e a configuração do seu GPS. Você traçou? Que caminho é esse? Você checou? Qual o meio de transporte você tem utilizado? Você merece um pouquinho mais de tranquilidade e conforto, será? Se durante estes questionamentos a crise aparecer, pode ser excelente).

A crise diz da angústia, este afeto que também funciona como um sinal. É o afeto que não engana, segundo Lacan.

Uma resposta à crise da meia idade

Então, a crise pode ser a porta que se abre para um reposicionamento, para um descanso, uma pausa nesses duzentos por hora que seguimos, carregando essas malas pesadas meio sem destino, ou como o Lulu Santos já cantou: (com) “tamanha pressa de chegar a nenhum lugar”.

Uma viagem sem conexão com a própria subjetividade, sem implicação subjetiva e carregando bagagens obsoletas pode se traduzir em energia desperdiçada, além de muitos outros desperdícios; de vida, tempo, experiências e tudo mais que merecemos.

Enfim… a crise chegará para algumas pessoas e  pode ser acolhida como uma oportunidade para fazermos diferente, para reconhecermos nossos incômodos e repensarmos nossos posicionamentos diante do mundo e de nós.

Para que essa crise não precise chegar lá na frente, quando tivermos centenárias revendo nossos percursos, pois ele já estará praticamente finalizado.

Na meia idade a crise é promotora de mudanças, ao menos tem um grande potencial para ser.

E estas reflexões se desdobram em muitos outros temas, conforme a proporção das crises e as bagagens; trocadas, perdidas ou obsoletas…

Metaforicamente podemos pensar: Profissão, trabalho, casamento, filhos, cidade que mora, casa que habita, amigos que mantém ou se vão.

Lutos não elaborados, dores alheias que carregamos como sendo próprias, situações tensas, violentas ou desrespeitosas em que permanecemos quando deveríamos nos retirar…

Cada um destes temas é assunto que rende outro texto, ou vários outros.

Para encerrar deixo um trecho do livro do Valter Hugo Mãe, que cai como uma luva por aqui:

“Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho […] Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas.

Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar sua companhia. Via-se metade ao espelho pois se via sem mais ninguém, carregado de ausências e silêncios como os precipícios ou os poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía” (MÃE, 2019, p. 19)

Que possamos nos inspirar e carregar malas mais sintonizadas com o que de fato precisamos e caminhos mais conectados com nossos desejos.

Sem esquecer das companhias amorosas; sejam na estrada, em parte do caminho ou nas paradas.

E tudo bem mudar a direção se nossas crises e nossas “metades” nos apontarem um outro destino.

Referências:

MÃE, Valter Hugo. O filho de mil homens. São Paulo: Biblioteca Azul: 2016.

PAPALIA, Daiane et al. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artmed, 2006.

Silêncios, pausas e algumas palavras sobre 2020

homem olhando na beira do mar

Penso 2020 como um processo psicanalítico, com todas as suas variações subjetivas, o famoso “cada caso é um caso”.

Até então não havíamos vivenciado um acontecimento partilhado por tantos, que permitisse uma certa demonstração das diferenças, sejam no modo de encarar o fato, de aceitá-lo, recusá-lo ou negá-lo.

Como todo processo, não pôde ser totalmente linear. Cheio de idas e vindas, de adaptações e desadaptações, de situações que até então veladas foram re-veladas.

O que não se faz sem angústia. E sem perder a noção do tempo, em certa medida. O que veio primeiro e o que se conecta com o quê, afinal? Um ano de associações (e desconexões) livres?

Percebo 2020 como um processo que nos convida inevitavelmente a um retorno ao passado, sem hipnose, sem divã e sem um analista suposto saber conduzindo…

Questionamentos que trazem muitas reflexões

Fato é que muitos questionamentos chegaram.

Da própria psique ou por influência de tantas outras experiências vivenciadas no formato online, que romperam as barreiras das distâncias físicas:

“O que me trouxe até aqui? O que me fez estar onde estou? Com quem estou? É isso mesmo? Quero prosseguir, quero trabalhar estas relações, quero rompê-las, suspendê-las, construir outras? Resgatar aquelas que se perderam?”.

São inúmeras possibilidades de questionamentos…

Como um processo psicanalítico, há quem “embarcou” no ano, atravessou as entrevistas preliminares e se deparou com a travessia da fantasia.

Sabemos que essa travessia não se faz sem angústia e que na análise se paga para sofrer em certa medida, justamente para não sofrer ainda mais por carregar registros que psiquicamente podem ser trabalhados e transformados.

O que obviamente não se faz sem dor e sem custo. Custo psíquico, sobretudo.

De investir no processo, esse famoso encontro consigo mesmo e com a sua verdade, sempre subjetiva e incompleta, senão provisória. E com a dor de des-iludir.

Lendo diversas postagens de hoje, que sugerem o famoso “balanço do ano”, percebo a complexidade do arcabouço humano: há quem ainda esteja revoltado, brigando, há teorias que beiram a paranoia no sentido da persecutoriedade do vírus.

Temos os negacionistas (estes nem Freud explica), há pessoas gratas com o que aprenderam, seja por meio de decepções, elaborações ou construções.

Vejo muitas diferenças. E o que vejo de ponto de conexão é o que temos de efeito da realidade, que até pode ser negada, mas só até certo ponto.

Um ano de perdas…

Há quem não “entrou em análise”, seja pela resistência, seja pela falta de transferência, seja porque não deu conta de arcar com os custos psíquicos.

E não podemos nos esquecer de todos aqueles que tendo entrado ou não “em processo” tiveram tantos lutos para lidar ao longo do ano.

Lutos reais, deste assombroso número de mortes que nos faz temer o barco sem rumo que embarcamos neste país, sejam os lutos das nossas ilusórias noções de controle sobre a vida e sobre o tempo

Houve também outras perdas que demandaram lutos: empregos, relações, remunerações e a forma de perceber as próprias vidas e o próprio planeta.

Os véus que recobriam um certo imaginário que adocicava a aspereza da realidade se rompeu e nossa fragilidade está escancarada, assim como nossas diferenças.

Não sabemos porque alguns resistem e outros sucumbem a este vírus, mas sabemos que somos sim seres vulneráveis, assim como as relações e as nossas supostas certezas.

Diante do que é tão denso e impactante, retomamos as nossas defesas: há quem enfrente demasiado e quem negue patologicamente, faz parte da nossa condição humana.

Estas reflexões me fazem retornar à Freud, em Sobre a transitoriedade, quando o psicanalista nos indagava sobre o valor da vida e em sua relação com o tempo, no qual afirmava que a transitoriedade da vida, a sua impermanência, pode aumentar ainda mais seu valor:

“o valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo […] uma flor que dure apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela” (FREUD, 1916/1996).

A impressão de que tudo passou muito rápido

2020 passou rápido demais para muita gente, foi “eterno” para tantas outras pessoas e foi concomitantemente vagaroso e acelerado para outras.

Fato é que como já cantou Caetano, Gal e Roberto Carlos na música Força estranha: “o tempo não para e no entanto ele nunca envelhece”.

Mas desconfio que a nossa percepção e relação com ele possa ter mudado neste ano de pandemia. Com o tempo e com a vida.

Ao menos para quem bancou o encontro com o analista, ainda que virtualmente.

FREUD, S. Sobre a transitoriedade. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.