Encontros e Desencontros em Modern Love

capa da serie Modern Love

Modern love é o tipo de série que dá um quentinho no coração quando acaba, que faz a gente ter esperança nas boas conexões, em bons encontros e coincidências felizes.

Apesar das intempéries da vida, sem deixar de lado as impossibilidades, restrições e a própria finitude, a série resgata a ideia de amor como elo, como uma energia crucial para nos manter conectados; seja pela amizade, pela filiação, pela adoção, por via de uma parceria amorosa, de um pai, de um filho, de novos casamentos, de amizades.

Essa série conversa bem com a noção de amor da psicanálise, sempre atravessado pelo inconsciente e concebendo o amor como Eros e Tânatos, concomitantemente.

Há conexões e desenlaces, com reparações e elaborações, conforme as experiências e narrativas.

O amor veiculado em Modern love é o amor desafiador no sentido de contemplar uma perspectiva mais realista, embora também carregue certos resquícios do amor romântico.

Principalmente no aspecto de sua domesticação, representado pelo clássico “felizes para sempre”.

O amor em Modern Love

O amor romântico que é mantido aqui diz mais das escolhas que da eternidade, o que torna os personagens mais humanizados e a proposta mais tipicamente cotidiana, com cara de “a vida como ela é”.

Temos as nuances da pós-modernidade, como os encontros via aplicativos e as desconexões menos desastrosas e sem grandes sofrimentos, por estarem integradas ao processo de vivenciar as experiências.

Interpreto como um contemporâneo menos afetado pela fluidez e liquefação das relações descritas por Bauman e Lipovetsky, ainda que atravessadas por estas de alguma maneira.

Modern love nos faz pensar no “eleito fantasiado”, na vulnerabilidade do encontro com  o outro, aquele que por vezes é apenas construído em torno de ideais.

E envolve também investimentos e projeções, podendo até dar a ele certa conotação de eternidade, mas lembrando o “que seja infinito enquanto dure” de Vinícius de Moraes.

Apresenta diluidamente no enredo dessas histórias (que são baseadas em histórias reais publicadas num jornal americano), o desafio do encontro com o outro, seja no aspecto trágico/ cômico dos primeiros encontros, passando pelo amor edípico.

Isso também inclui o amor na terceira idade, amor pelo filho que não concebeu mas que o adotou como seu, amores desencontrados, amores afetados pela bipolaridade, amores de amigos que por vezes são tão mais zelosos e acolhedores que amores de parcerias sexuais.

Enfim… amores possíveis e reais.

O amor é…

relcionamento em modern love

O amor romântico formatado no casamento é bem representado pelo casal que vai buscar a terapia, como geralmente acontece.

Na busca pela “salvação” da relação, ainda que este não seja a princípio o compromisso da terapia de casal, que continua sendo com a saúde mental dos envolvidos e não com a manutenção do relacionamento. Particularmente este episódio, o amor é sugerido como um acontecimento, como um elo que conecta as pessoas, ao mesmo tempo que a cada um cabe a decisão do momento do desenlace.

O “felizes para sempre” não é forçado, e o relacionamento se constrói em torno do que é possível, com forte participação da realidade.

Como bem dito por um dos personagens: “o amor é um monte de coisas”.

Modern love diz, sobretudo de quem está por perto em momentos específicos da sua vida, gente que escolhe ficar, mesmo quando há tantos indícios para partir.

E sobre as partidas, sugere que depois destas, a vida também continua.

Os relacionamentos na perspectiva da série

É um bom passatempo para visualizar o panorama amoroso, que é o que vemos cotidianamente no nosso exercício clínico.

Com uma abertura linda de ver e um último episódio bem emocionante, Modern love nos faz recordar que diante da alteridade, no encontro com o outro, somos sempre, ao menos em alguma medida, vulneráveis.

Transitamos todos pelos mesmos espaços urbanos e por vezes, não nos damos conta de que no meio de tanta correria, tem gente a sorrir, a chorar, a se acidentar, a esperar e a falecer.

Para mim, a série deixa a ideia de que relacionamentos são espécies de empreendimentos, acontecimentos, que envolvem movimentos, tolerâncias e diferenças.

A tendência é buscar tudo fora e longe, mas as melhores coisas da vida não são coisas e podem estar bem pertinho.

Enquanto assistia, pensei em diversos momentos na célebre frase de Guimarães Rosa: “A felicidade se encontra é em horinhas de descuido”.

Deixe aqui nos comentários qual dessas histórias é a sua preferida.

A minha, tem essa frase fofa: “É bobagem pensar que gente mais velha tem tudo sob controle. Somos iguais. Somos humanos”.

Existe “crise da meia idade”?

Mulher de meia idade olhado para frente

Um dos meus temas favoritos das aulas de Psicologia do Desenvolvimento do adulto era a tal da “meia idade”…

Quando comecei a dar essas aulas eu tinha por volta de 30 anos, o que na ocasião significava distância de uma década até esse marcador de vida.

No entanto, ainda que bem abstratas na minha vida prática naquela ocasião, as propostas de Papalia et al (2006) sobre este assunto me interessavam bastante.

A ideia de pensar a meia idade como um momento de olhar para a frente e para trás, com a possibilidade de avaliação e “correção de rota” sempre me interessou.

Agora, mais de uma década depois, quando eu mesma vou revendo os meus traçados nesta trajetória chamada vida, convido à um olhar para seu próprio percurso, destino e bagagem.

Sabemos que do ponto de vista psicanalítico, o inconsciente é atemporal, não deixando de atualizar registros passados nem diferenciando o antes e o depois.

Os registros e afetos permanecem em nossos arcabouços psíquicos, parando ou não para olharmos para isso. Assim, sempre é tempo de rever o mal-estar camuflado na rotina ou massacrado pela tentativa de negação.

Nada desapareceu, mas talvez a gente pense que sim …

Dessa forma, considero possível um diálogo entre a atemporalidade sustentada pela psicanálise e a noção de meia idade da Psicologia do desenvolvimento.

Afinal, o que é meia idade?

A meia idade, refere-se ao período da vida que coincide com cerca de metade da expectativa de vida, circula em torno de 40 a 50 anos.

Quando penso nessa fase da vida, lembro da personagem Evelyn, de Tomates verdes fritos, que traduzia muito bem o quanto este período diz daquele momento da vida em que você se sente” muito velha para ser jovem, mas ao mesmo tempo, nova demais para ser velha”.

Recentemente descobri que essa frase vem da Clarissa Estés, no seu livro A ciranda das mulheres sábias.

É um momento em que a gente pode se interrogar sobre a metade da vida já vivida e acolher a outra metade que o futuro acena.

A proposta é rever o que de fato podemos considerar como “vida bem vivida”, como foi, o que foi aprendido, perdido, uma espécie de encerramento de um ciclo para que possa se pensar e viver melhor o próximo.

Contudo, há quem interprete que neste momento a metade da vida levou a fase mais interessante e promissora e adota uma atitude temerosa e pessimista perante o que está por vir, vislumbrando assim, pouca ou nenhuma possibilidade de reparação ou mudança.

Obviamente não há receitas, não há mapa da mina e nem estrada das pedras amarelas que possamos seguir.

Mas a perspectiva na qual nos inclinamos para avaliar a trajetória pode fazer muita diferença.

Ela pode inclusive, nos acompanhar quando a fase idosa chegar.

A meia idade e a psicologia

Nesse sentido, a escuta psicológica e psicanalítica podem ajudar bastante no processo.

Pode ser um jeito de dar uma parada e refletir um pouquinho sobre isso tudo, dividindo o peso com alguém imparcial e sem julgamentos.

Na perspectiva da Psicologia do Desenvolvimento podemos pensar que neste período da vida algumas pessoas irão viver a chamada “crise da meia idade”.

Apesar da palavra crise ser associada negativamente em nossa cultura, aqui ela tem um sentido interessante.

Ela dá aquela “sacudida” para que repensemos nossas próprias rotas, quais são as bagagens e suprimentos vamos levando nesta viagem chamada vida.

(Você escolheu seu roteiro pelo desejo? Ou carrega malas pesadas que na verdade são os desejos dos outros, segue a rota que traçaram para você? Pois é, sobretudo os mapas, e a configuração do seu GPS. Você traçou? Que caminho é esse? Você checou? Qual o meio de transporte você tem utilizado? Você merece um pouquinho mais de tranquilidade e conforto, será? Se durante estes questionamentos a crise aparecer, pode ser excelente).

A crise diz da angústia, este afeto que também funciona como um sinal. É o afeto que não engana, segundo Lacan.

Uma resposta à crise da meia idade

Então, a crise pode ser a porta que se abre para um reposicionamento, para um descanso, uma pausa nesses duzentos por hora que seguimos, carregando essas malas pesadas meio sem destino, ou como o Lulu Santos já cantou: (com) “tamanha pressa de chegar a nenhum lugar”.

Uma viagem sem conexão com a própria subjetividade, sem implicação subjetiva e carregando bagagens obsoletas pode se traduzir em energia desperdiçada, além de muitos outros desperdícios; de vida, tempo, experiências e tudo mais que merecemos.

Enfim… a crise chegará para algumas pessoas e  pode ser acolhida como uma oportunidade para fazermos diferente, para reconhecermos nossos incômodos e repensarmos nossos posicionamentos diante do mundo e de nós.

Para que essa crise não precise chegar lá na frente, quando tivermos centenárias revendo nossos percursos, pois ele já estará praticamente finalizado.

Na meia idade a crise é promotora de mudanças, ao menos tem um grande potencial para ser.

E estas reflexões se desdobram em muitos outros temas, conforme a proporção das crises e as bagagens; trocadas, perdidas ou obsoletas…

Metaforicamente podemos pensar: Profissão, trabalho, casamento, filhos, cidade que mora, casa que habita, amigos que mantém ou se vão.

Lutos não elaborados, dores alheias que carregamos como sendo próprias, situações tensas, violentas ou desrespeitosas em que permanecemos quando deveríamos nos retirar…

Cada um destes temas é assunto que rende outro texto, ou vários outros.

Para encerrar deixo um trecho do livro do Valter Hugo Mãe, que cai como uma luva por aqui:

“Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho […] Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas.

Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar sua companhia. Via-se metade ao espelho pois se via sem mais ninguém, carregado de ausências e silêncios como os precipícios ou os poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía” (MÃE, 2019, p. 19)

Que possamos nos inspirar e carregar malas mais sintonizadas com o que de fato precisamos e caminhos mais conectados com nossos desejos.

Sem esquecer das companhias amorosas; sejam na estrada, em parte do caminho ou nas paradas.

E tudo bem mudar a direção se nossas crises e nossas “metades” nos apontarem um outro destino.

Referências:

MÃE, Valter Hugo. O filho de mil homens. São Paulo: Biblioteca Azul: 2016.

PAPALIA, Daiane et al. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artmed, 2006.

Silêncios, pausas e algumas palavras sobre 2020

homem olhando na beira do mar

Penso 2020 como um processo psicanalítico, com todas as suas variações subjetivas, o famoso “cada caso é um caso”.

Até então não havíamos vivenciado um acontecimento partilhado por tantos, que permitisse uma certa demonstração das diferenças, sejam no modo de encarar o fato, de aceitá-lo, recusá-lo ou negá-lo.

Como todo processo, não pôde ser totalmente linear. Cheio de idas e vindas, de adaptações e desadaptações, de situações que até então veladas foram re-veladas.

O que não se faz sem angústia. E sem perder a noção do tempo, em certa medida. O que veio primeiro e o que se conecta com o quê, afinal? Um ano de associações (e desconexões) livres?

Percebo 2020 como um processo que nos convida inevitavelmente a um retorno ao passado, sem hipnose, sem divã e sem um analista suposto saber conduzindo…

Questionamentos que trazem muitas reflexões

Fato é que muitos questionamentos chegaram.

Da própria psique ou por influência de tantas outras experiências vivenciadas no formato online, que romperam as barreiras das distâncias físicas:

“O que me trouxe até aqui? O que me fez estar onde estou? Com quem estou? É isso mesmo? Quero prosseguir, quero trabalhar estas relações, quero rompê-las, suspendê-las, construir outras? Resgatar aquelas que se perderam?”.

São inúmeras possibilidades de questionamentos…

Como um processo psicanalítico, há quem “embarcou” no ano, atravessou as entrevistas preliminares e se deparou com a travessia da fantasia.

Sabemos que essa travessia não se faz sem angústia e que na análise se paga para sofrer em certa medida, justamente para não sofrer ainda mais por carregar registros que psiquicamente podem ser trabalhados e transformados.

O que obviamente não se faz sem dor e sem custo. Custo psíquico, sobretudo.

De investir no processo, esse famoso encontro consigo mesmo e com a sua verdade, sempre subjetiva e incompleta, senão provisória. E com a dor de des-iludir.

Lendo diversas postagens de hoje, que sugerem o famoso “balanço do ano”, percebo a complexidade do arcabouço humano: há quem ainda esteja revoltado, brigando, há teorias que beiram a paranoia no sentido da persecutoriedade do vírus.

Temos os negacionistas (estes nem Freud explica), há pessoas gratas com o que aprenderam, seja por meio de decepções, elaborações ou construções.

Vejo muitas diferenças. E o que vejo de ponto de conexão é o que temos de efeito da realidade, que até pode ser negada, mas só até certo ponto.

Um ano de perdas…

Há quem não “entrou em análise”, seja pela resistência, seja pela falta de transferência, seja porque não deu conta de arcar com os custos psíquicos.

E não podemos nos esquecer de todos aqueles que tendo entrado ou não “em processo” tiveram tantos lutos para lidar ao longo do ano.

Lutos reais, deste assombroso número de mortes que nos faz temer o barco sem rumo que embarcamos neste país, sejam os lutos das nossas ilusórias noções de controle sobre a vida e sobre o tempo

Houve também outras perdas que demandaram lutos: empregos, relações, remunerações e a forma de perceber as próprias vidas e o próprio planeta.

Os véus que recobriam um certo imaginário que adocicava a aspereza da realidade se rompeu e nossa fragilidade está escancarada, assim como nossas diferenças.

Não sabemos porque alguns resistem e outros sucumbem a este vírus, mas sabemos que somos sim seres vulneráveis, assim como as relações e as nossas supostas certezas.

Diante do que é tão denso e impactante, retomamos as nossas defesas: há quem enfrente demasiado e quem negue patologicamente, faz parte da nossa condição humana.

Estas reflexões me fazem retornar à Freud, em Sobre a transitoriedade, quando o psicanalista nos indagava sobre o valor da vida e em sua relação com o tempo, no qual afirmava que a transitoriedade da vida, a sua impermanência, pode aumentar ainda mais seu valor:

“o valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo […] uma flor que dure apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela” (FREUD, 1916/1996).

A impressão de que tudo passou muito rápido

2020 passou rápido demais para muita gente, foi “eterno” para tantas outras pessoas e foi concomitantemente vagaroso e acelerado para outras.

Fato é que como já cantou Caetano, Gal e Roberto Carlos na música Força estranha: “o tempo não para e no entanto ele nunca envelhece”.

Mas desconfio que a nossa percepção e relação com ele possa ter mudado neste ano de pandemia. Com o tempo e com a vida.

Ao menos para quem bancou o encontro com o analista, ainda que virtualmente.

FREUD, S. Sobre a transitoriedade. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.