Todos têm suas próprias razões

Todos têm suas próprias razões

Se eu tivesse que escolher uma única frase entre as quase 100 canções da Legião seria essa: “Todos têm suas próprias razões”, da música Eu era um lobisomem juvenil*. Eu realmente compactuo com a proposta de que existem razões, motivos e justificativas para as ações de cada um, por mais bizarras que elas possam parecer. Por isso adoro tanto ler biografias e ouvir as histórias de vida das pessoas.

Além de ler e escutar também gosto de me surpreender com as conexões que elas fazem entre uma experiência e outra, na tentativa de construir ou criar certa construção de por que se é assim, ou como a vida chegou a este ponto. Sem falar no fato de que olhando bem de perto, a vida de ninguém foi um jardim de rosas.

Quando a gente se debruça a pensar no “lado B”, nos bastidores, geralmente nos surpreendemos bastante. Sobre as dores e angústias alheias, sobre os reais impactos das consequências mais subjetivas, nada ou muito pouco, sabemos. Na prática, isto não é tão simples. Por isso resolvi esboçar este texto.

Cada um tem suas próprias razões. O que isso significa?

Quando a gente aceita o fato de que cada um tem razões e motivos para ser quem é, fazer o que faz, ter os objetivos que tem, não significa que a gente concorde, relativize ou desmereça.  Acho que nunca é demais lembrar a diferença entre entender e concordar/aceitar e desculpar algumas coisas. 

Quando entendo, não significa que eu compactue, que queira fazer parte, ser participante. Mas entendo que cada pessoa tenha suas razões para fazer o que faz, para gostar do que gosta e está tudo bem.

Daí eu fazer parte disso, parabenizar a pessoa, nutrir afeto por ela, ou algo assim, é outra coisa. Quando isso transborda o campo individual e reverbera no coletivo fica mais explícita a diferença. Se um discurso implica em romper pactos éticos que envolvem vidas alheias, se estremece o campo da coletividade, aqui tem uma lacuna gigante. 

Quando um comentário deixa de ser opinião e incita a violência, desencoraja as pessoas a tomarem uma vacina, a cumprirem pactos que estabeleceram com outras pessoas a coisa vai tomando uma proporção maior. (Não custa lembrar que discurso de ódio não é opinião e ficar repassando Fake News não seja irrelevante, ainda que você tenha suas razões).

Lendo algumas postagens aqui na internet, a ideia de que cada um tenha as próprias razões parece difícil no nosso contexto, porque implica inevitavelmente em julgar menos, em não deduzir e não avaliar a vida alheia. Inclusive, em tentar entender como as pessoas “passam pano” para quem vai tolindo sua autonomia e de alguma forma capturando seus direitos.

Às vezes, tentar entender é muito difícil, porque algumas atitudes parecem carecer de lógica básica, mas olhando com cuidado deve haver uma conexão com o fato. Há uma história de vida por traz de toda postagem, de todo comentário.

E quando isso é muito bizarro geralmente há também pouca reflexão, muita rigidez e um automatismo de massa, que impede questionamentos básicos e imprescindíveis para uma certa liberdade e leveza. Ainda mais para mudanças e transformações. E isso causa certo impasse em escrever e no modo como seremos interpretados.

Assim, seja lá o que for que você esteja pensando agora sobre quem quer que seja… Talvez você não tenha nem uma pequena noção do que de fato se trate… E as redes sociais confundem bem essas questões. 

O quanto o outro é feliz, está satisfeito, planeja, espera, se movimenta em busca de… Não sabemos. A razão de cada um mostrar o que mostra, fazer o que faz e silenciar ou argumentar o que quer que seja, salvo em raras exceções, também não nos será revelada. Até porque nem sempre a própria pessoa sabe suas motivações, ainda que acredite que saiba.

O mais bacana disso tudo, é lembrar da nossa instância inconsciente, essa da qual também não conhecemos tanto assim, não sem antes nos enveredarmos por um significativo trabalho psíquico.

Do inconsciente, emergem muitos de nossos motivos e se nem nós mesmos podemos defendê-los em quaisquer circunstâncias, por que tanto atrevimento em julgar o  alheio?  

E assim surgem as intolerâncias…

Diante destes tensos discursos homofóbicos, transfóbicos, misóginos, machistas, antivax, acho fundamental esse esclarecimento. Entender razões me fazem precisar argumentar e dizer de forma bem esclarecida o quanto não concordo – e não farei parte disso.

Ainda que no particular, no caso a caso você tenha suas razões e eu possa até compreendê-las. É importante entrar em contato com as próprias razões para avançarmos enquanto humanidade. 

Quando paro pra ler as postagens no Insta tendo a tentar escutar além das palavras, vejo as contradições, os preconceitos, a incoerência dos discursos que ainda que cercados de  palavras vitais, propagam uma vibe mortífera e incoerente. 

Sim, entendo que todos tenham suas próprias razões

Mas precisamos de um pacto coletivo, ético, respeitoso e pacífico. 

Se vai ferir, maltratar, adoecer, desrespeitar o outro lembre-se que todos têm suas próprias razões. Você também. Entenda as suas, depois se for o caso, passe adiante.

* trecho de “Eu era um lobisomem juvenil”, do álbum As quatro estações.

**“Quem insiste em julgar os outros, sempre tem alguma coisa pra esconder”

Repetições e criações: repetimos o mesmo ou permitimos o aparecimento do inédito?

Repetições e criações

Depois de um percurso pela Psicanálise começamos a ver certa obviedade em algumas situações e nos esquecemos de que nem todas as pessoas envolvidas podem estar percebendo da mesma forma.

De um modo geral, escuto que seria mais interessante ou mais necessário que o “livre arbítrio” desse conta de promover as “escolhas saudáveis”, que “deveria” ser assim “sempre”, sobretudo quando se pensa em escolhas conscientes e racionais. A bizarra proposta de “consertar” tudo, motivar a si mesmo, desde que você gerencie suas escolhas. Sabemos que a castração é um impeditivo e a proposta de tal felicidade não se cumpre, como bem advertido por Freud.

Quando paramos para olhar de perto, desde os primórdios da Psicanálise começamos a lidar com o fato inevitável de reconhecer que não é bem assim que acontece. As pessoas repetem as insatisfações provenientes de seus registros infantis, sem querer e mesmo sem saber.

O que significa repetição na psicanálise?

Como já bem dito por Freud, repetem, ainda que sem saber que o fazem. Estranham, mas permanecem na situação, porque é ao mesmo tempo familiar – estranha, o que faz querer sair e ficar. Por vezes, a ambivalência se dá na mesma proporção, paralisando os movimentos desejantes e deixando a sensação de estagnação.

Penso que principalmente no quesito “compulsão à repetição”, aos leigos chama atenção a questão “como podemos nos enveredar por situações que nos fazem mal?”, “se já aconteceu tal coisa tantas vezes, o que está esperando?” e por ai vai … Observando mais de perto, percebemos que inúmeras situações nos fazem bem e mal ao mesmo tempo. Há um ganho proveniente do reconhecimento da familiaridade, do conforto, do conhecido, do já visto.

Pois bem, o inconsciente e seus trilhamentos nos direcionam para as situações familiares, que combinam com nosso repertório, seja ele qual for. Até sermos atravessados pelas palavras provenientes das produções discursivas realizadas no divã. Aí o capítulo da história passa a ser bem diferente.

Passa a ser difícil permanecer em situações que nos trazem a sensação de já saber o final do filme, quando é demasiadamente angustiante, torpe ou sem emoções que façam valer a pena. Esperar para constatar a frustração já sinalizada, ou, reconhecer o sofrimento, o mal-estar e a repetição, também tem efeitos. Um deles pode ser o da impossibilidade em continuar o processo repetitivo e paralisante.

Lendo Alain de Botton, senti de compartilhar um fragmento no qual o autor ilustra tão lindamente estes aspectos, que dialoga muito oportunamente com estas considerações:

“Acreditamos estar buscando a felicidade no amor mas o que queremos é familiaridade.  Tentamos recriar em nossos relacionamentos adultos aqueles exatos sentimentos que conhecíamos tão bem na infância – e que raras vezes se limitavam a ternura e afeto. 

Recordar, repetir e elaborar

O amor que a maioria de nós experimentou bem cedo vinha misturado a outras dinâmicas mais destrutivas: o sentimento de querer ajudar um adulto fora de controle, de privação de afeto de um dos pais ou medo de sua raiva, ou de não ter segurança suficiente para comunicar nossos desejos mais complicados. […] Saímos em busca de pessoas mais interessantes, não por causa da crença de que a vida com elas será mais harmoniosa, mas pela sensação inconsciente de que, de uma forma tranquilizadora, elas vão parecer familiares em seus padrões de frustração”. ( BOTTON, 2017, p. 55)

Botton, nos lembra que quando tudo nos parece equilibrado demais e tranquilo demais corremos o risco de achar “estranho” e “imerecido”. A partir daí e em função disso, vamos produzindo os mais variados arranjos, que costumam mudar de direção conforme a experiência analítica. Há um certo trevo no caminho em que se escolhe quem prevalece: o velho e paralisante aspecto mortífero do gozo ou os movimentos sublimatórios, desejantes e vibrantes que nos impulsionam?

A repetição ou o trabalho criativo de inaugurar o inédito? Por isso, costumamos dizer que a análise não tem preço e sim valor. Um valor sempre muito singular e reconhecido por quem o banca. Um valor que está em prol da vida, que possibilita bancar o desejo.

Dessa forma, é oportuno e fundamental lembrar a função do processo psicanalítico, em seus ancoramentos nos pressupostos freudianos em “recordar, repetir e elaborar”, via transferência. Após um percurso analítico, não estaremos prontos, acabados ou curados (de nós mesmos, sobretudo). 

Mas estamos mais apropriados de nossos desejos, que nos sustentam em sair da sala de cinema ou parar o filme quando a gente já sabe que não quer, não pode ou não faz bem continuar investindo mais afetos e tempo no enredo.  É preciso reconhecer a hora de se retirar. Bom mesmo é quando o filme é tão bom que literalmente a gente paga para ver de novo. E ainda quer levar alguém junto, para compartilhar a experiência. Quando é possível gargalhar de novo, chorar de tanto rir, quando o riso é frouxo, é fácil… ou chorar de emoção, quando o choro funciona como espécie de bálsamo para a alma. A gente até fica sentado no cinema com os olhos lacrimejantes, vendo as letras subirem.

O desafio está justamente em reconhecer os efeitos psíquicos e decidir a hora de ir ou ficar… e seja qual for a decisão, que seja sem vacilo e sem dor.

Como já cantou Milton Nascimento, tão lindamente na canção composta por Telo Borges, intitulada “Voa bicho”: “Como um bicho que sai do ninho, sem vacilo nem dor na minha vez […] andorinha faz a canção”.

Referências

BOTTON, Alain. O curso do amor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

As flores de plástico não morrem

As flores de plástico não morrem

Uma afirmação que sempre me intrigou foi: “que linda, parece artificial”. Já ouvi muitas vezes essa expressão, sobretudo em relação às flores, pets e afins. A ideia de que são tão belos que nem parecem de verdade me parece curiosa … No entanto, sempre pensei o oposto, que o mais interessante e admirável fosse justamente o que parecesse mais verdadeiro, com toda a complexidade que isso comporta.

Para mim, as fores artificiais quando são bonitas são justamente porque são parecidas com as naturais e não o contrário. Verdadeira, natural, passageira, transitória, perecível, autêntica, seja qual for a palavra … Para mim, parece mais interessante que artificial. Penso isso muito antes das redes sociais, que rende uma outra reflexão nessa linha do artificial, dos filtros, etc.

Tal reflexão era uma questão infantil para mim. Afinal como é isso do lindo ser o artificial? Anos depois, para minha grande surpresa e admiração descobri em “Sobre a transitoriedade” Freud questionando justamente esta questão. O psicanalista indagava se uma flor seria mais bela por seu aspecto transitório, ou se o fato de se deteriorar e mesmo desaparecer com o tempo, diminuiria seu valor.

Leia também: Um breve papo com Rubem Alves e Clarissa Estés sobre amores possíveis

Há beleza no artificial?

“Flores”, a famosa música do Titãs, título bem oportuno para este questionamento, sugere que as flores, que estão por todo lado, nos lembram a finitude: afinal, nesta canção, “as flores têm cheiro de morte”.

As flores estão por toda parte: em cima do telhado, debaixo do travesseiro, “há flores em
tudo que eu vejo”. A finitude, embora tantas vezes negada, está por aí o tempo todo. A vida inteira, por todos os cantos que a natureza nos alcança e o artificial não dá conta de tamponar a finitude. Só quem se dá ao luxo de parar vez por outra no aqui e agora vai se dar conta disso.

Parar para contemplar a natureza, seus ciclos, seus movimentos, transformações,
encerramentos e nascimentos. Parar para olhar pode ser aversivo e interessante ao mesmo tempo, dependendo do destino que daremos a tal constatação. Pode ser sofrer pelo fato de que todos os ciclos se concluem, seja pela beleza e grandiosidade que há neste mesmo fato.

“A dor vai curar essas lástimas/ o soro tem gosto de lágrimas/ as flores tem cheiro de morte / a dor vai fechar esses cortes”. Faremos nossos percursos com lágrimas, dores e finitudes, com mais ou menos filtros, com mais constatação ou mais fuga, cortes mais reais ou mais simbólicos, dependendo de nossos recursos psíquicos diante das circunstâncias.

As lágrimas fazem parte também, e requer uma boa dose de disposição para continuar insistindo em reprimi-las. As lágrimas podem ter poder curativo e restaurador, quando fazem parte do ciclo das dores, transformações e restaurações. Dores, lágrimas, cortes, cicatrizações, espécies de tatuagens que permanecerão. E está tudo bem.

De forma mais explícita ou oculta a questão permanece: o que de fato vale a pena, cheirar e regar as “flores vivas”? ou permanecer com a sensação de que elas podem ser eternas pelo fato de que foram compradas por um alto custo numa loja de departamento? Qual encontro vale mais a pena? O que você percebe e pode encarar a pessoa sem filtro, com todos os seus impasses e dificuldades ou os “filtrados” pelo Instagran? O que vale mais a pena para você? Alimentar e contemplar os aspectos falíveis e transitórios ou alimentar a ilusão de uma vida artificial?

A beleza incomparável do natural

Eu permaneço com a resposta de Freud e com a da Natureza, com seus ciclos, suas estações, seus movimentos. As flores de plástico não morrem, mas não cheiram, não abrem, não murcham, não me recordam a grandiosidade que há nisso tudo.

Freud, sempre oportuno, nos disse que: “O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos.

Quanto à beleza da natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna […] Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela”. (FREUD, 1916[1915]/1996, p.318)

A minha escolha continua sendo pelas flores vivas. As flores de plástico não morrem porque não têm vida. Beleza sem vida vale alguma coisa? Que possamos chorar pelo que vale a pena, não por ter “despedaçado as flores que estão no canteiro”.

Referências:

FREUD, S. (1916 [1915]). Sobre a transitoriedade. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
MIKLOS, P., BRITO, S., GAVIN, C., BELLOTTO, T. Flores. Õ blésq blom. WEA, 1989.

Um breve papo com Rubem Alves e Clarissa Estés sobre amores possíveis

Um breve papo com Rubem Alves e Clarissa Estés sobre amores possíveis

Com a proximidade do dia dos namorados, venho observando as movimentações em torno do tema nas redes sociais. De repente, o amor voltou a ser lindo, discursado pelas mesmas pessoas que veiculam diariamente as políticas de extermínio e agressão. As postagens patrocinadas começam a aparecer, repletas de produtos com as mais variadas formatações de “eu te amo”. Em tempos líquidos, nem todos os relacionamentos seguem a tendência da pós-modernidade, embora a fluidez das mudanças de status nos perfis possam sugerir que a questão seja mais complexa.

Para além das tendências comerciais, dos apelos e dos resquícios do amor romântico que reverberam em todos nós, relendo Clarissa Estés (2018) me senti provocada a compartilhar sobre os custos energéticos envolvidos nos relacionamentos, e penso ser bem oportuno falar disso nesta data.

Para a autora, é importante pensarmos no quanto as parcerias amorosas também nos “custam” em: “tempo, energia, observação, atenção, indecisão, sugestões, instruções, ensinamentos, treinos”. Ela nos convida a refletir sobre o quanto há a necessidade de investimentos e retornos, bem como nos perigos em torno dos “saques a descoberto de uma poupança psíquica” (ESTÉS, 2018, p. 305).

É um outro modo de pensarmos a velha história de equilíbrio entre o dar e o receber, pois a energia, o tempo, o reconhecimento e tudo mais fazem parte de um movimento que precisa ser ofertado e recebido, investido e reposto, precisa de fluidez, de circular, de respirar.  É importante não se perder de si, no processo de incluir o outro.

Uma crônica que inspira esta discussão

A respeito destes movimentos nas parcerias amorosas, acho importante chamar para a conversa a interessante metáfora de Rubem Alves que ilustra configurações de parcerias diferentes e sugere ser possível vivenciar experiências amorosas mais empáticas e generosas, sem se perder de si mesmo. “Tênis X Frescobol” é uma das minhas crônicas favoritas do autor e trata do reconhecimento de uma conexão possível, uma espécie de “jogo amoroso”, que promove parceria e fluidez, reverberando em diversas outras reciprocidades e permanências.

Embora o texto de Rubem Alves tenha sido escrito focado nos casamentos, penso que suas reflexões são oportunas para diversas relações humanas, no campo do coletivo também. O autor nos conta que há relações competitivas, que se assemelham ao jogo de tênis.

Nestas, os objetivos envolvem ganhar e derrotar o adversário e para isso, as estratégias envolvem cortadas e desestabilizações, feitas a partir de considerar os pontos mais fragilizados do outro. Assim, o lugar do parceiro, também “adversário” é este: o de possibilitar a vitória.

Sem o perdedor não há ganhador e para ganhar é preciso “cortar”. Neste caso, vencer parece bem importante, aquela sensação efêmera e específica de triunfo, tão almejada na contemporaneidade. Não se sabe ao certo para que serve, mas tanta gente corre desenfreada buscando cruzar essa linha de chegada. Aqui, a vitória também pode vir acompanhada de  solidão,  já que ao outro o lugar ofertado é o de utilidade e conveniência.

Fico pensando no quanto as redes sociais têm feito esta função – a de uma quadra de tênis. O tempo todo alguém em evidência, vitorioso, com a sensação de superioridade. Para isso, tantas pessoas se sentindo desconsideradas, cortadas, silenciadas. Precisando sair do jogo, literalmente perdendo espaço. Pensando nos relacionamentos, exaurida, sufocada, clamando para que algum juiz interrompa o jogo para que possa respirar novamente.

De alguma forma a pandemia nos trouxe uma rotina diferente que facilitou olhar para isso tudo, para os espaços, para as cortadas, para as inclusões e exclusões. Pesado, incômodo, difícil digerir. As promessas de revisão dos modos de posicionamento no mundo e diante do outro, tão propagadas na chegada da COVID 19, se revelaram impossíveis. Na prática, o isolamento é de outra ordem. Voltando para a metáfora de Alves (2008), parece que temos tantas quadras, redes e competições imaginárias e ocultadas…

Amores possíveis

Contudo, este texto é em defesa das parcerias possíveis, saudáveis, revigorantes, que se assemelham ao jogo de frescobol. Neste jogo, objetivo é um jogo fluido, de fato de parceria, com o objetivo de ajustar os desvios da bola e mantê-la em movimento, um movimento sustentado pelas duas partes, com interesse e reciprocidade.

Segundo Rubem Alves, neste caso: “Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha” (ALVES, 2008, p. 115). Convidando Estés (2008) para o diálogo, se uma parte investe muita energia na cortada, rapidamente a outra ficará sem recursos para investir. Se uma parte “falir” o jogo não prossegue. O frescobol nos faz pensar no quanto a tarefa de reinvestir e revigorar precisa fazer parte do processo. 

Em tempos de Bauman, Lipovetsky e Han, num mundo em que valoriza o desempenho, a performance e a vitória, pensar em equilíbrio de energia, em reciprocidade nas parcerias amorosas parece uma transgressão e tanto. Olhando bem de perto, os relacionamentos no estilo frescobol não costumam aparecer, sobretudo por não estarem na lógica da vitória ou da sociedade do espetáculo. Não por acaso, estes não precisam de validação externa, pois nutre-se em si mesmo. Mais importante que mostrar o jogo é de fato brincar durante o jogo, é a experiência em si, a vida ali. O que não parece carecer de curtidas, likes ou comentários. Pode ser um jogo privado ou restrito aos encontros autênticos.

Rubem Alves (2008), também nos sugere pensar nas bolas destes jogos como os sonhos das pessoas. O que andamos fazendo com os sonhos delas? Se é sonho é “coisa delicada, do coração”. Assim, qual é o objetivo em cortá-lo? Destruí-lo ou diminuí-lo?  “Há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam a espreita do momento certo para a cortada. […] O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento.  Aqui, quem ganha sempre perde”(ALVES, 2008, P. 116).

Enquanto humanidade, dada a realidade contemporânea, precisamos avançar muito.  Enlaçar mais e fazer menos “nós”,  fluir, compartilhar e não performar tanto. Quando coletivamente se ganha, o benefício se amplia. Quando só um ganha, que graça tem? Avançar é arriscar a novos modos de existência.

Como nos sugere Han (2020), “Aparentemente temos tudo; só nos falta o essencial, a saber, o mundo […] Perdemos a capacidade de admiração” (HAN, 2020, p. 128). Assim, quem sabe seja a hora de começar a jogar mais frescobol, a correr o risco de viver pela vida em si, com menos filtro e mais energia vital. No final das contas, é o que temos.

Referências

ALVES, Rubem. As melhores crônicas de Rubem Alves. Campinas, SP: Papirus, 2008.

ESTÉS, Clarissa Pínkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

HAN, Byung – Chul. Sociedade do cansaço. Petro´polis: Vozes, 2020.

O início, o fim e o meio das relações afetivas: reflexões a partir dos ciclos de vida-morte e vida no amor

mulher esqueleto - relações afetivas

Há tempos somos bombardeados por manifestações musicais, literárias, cinematográficas, poéticas e religiosas que associaram histórias de amor aos tão sonhados desfechos felizes. Acreditamos por meio dos equívocos construídos subliminarmente, que as relações acontecem numa espécie de sequência, como se cada história fosse um único script, que a gente identifique o início, o meio e o final, numa sequência por vezes previsível.

A partir da Mulher-Esqueleto, de Clarissa Pínkola Estés, somos convocados a pensar nos vários ciclos presentes num único relacionamento.

E de alguma forma refletir sobre a interessante possibilidade de vivenciar diversos finais, vários ciclos que se concluem numa mesma história. Segundo a autora, “dentro de um único relacionamento amoroso existem muitos finais” (ESTÉS, 2018, p. 188), o que explica parte do desafio da empreitada amorosa.

Os ciclos de vida-morte-vida no amor

Entendo que é preciso algum esforço para conceber esse pressuposto, mas também acredito que ele possa trazer mais leveza para o cotidiano. Pensar que a ideia de renovação, de fechamentos de conflitos e mudanças de status dentro de um mesmo relacionamento pode contribuir muito com a responsabilidade psíquica de cada um dos envolvidos.

No entanto, também será inevitável aceitar a tarefa de desemaranhar cada nó que venha a ser identificado, sobretudo em aceitar que nada esteja de fato assegurado. Há sempre algo mais, haverá sempre alguma coisa por fazer. Alguns nós só serão vistos depois que aqueles outros nós mais superficiais forem se desfazendo. Alguns desaparecem, outros se revelam, enaltecendo nosso tempo de nos ver e de re-ver nossas escolhas.

Contudo, para acolher esta proposta dos ciclos de vida-morte-vida no amor, precisamos de algum modo rever nossa noção de morte e de finitude. Precisamos nos dar conta de que a possibilidade de transformação, revitalização e ressignificação, que são conceitos tão importantes, não se dão desconectados da finitude.

Será preciso deixar ir o que não faz mais sentido, para que outras passagens possam se abrir e outras experiências, diferentes, mais elaboradas ou mais minimalistas possam surgir. Cada caso será sempre um caso, em relação a proposta de transformação, já que ela não condiz com o imaginário das idealizações, mas faz parte do processo de amadurecimento. Fato é que não será possível elaborar e transformar repetindo o mesmo, vivendo o já vivido e fixado nas mesmas dores. Eis o desafio, tão bem apontado por Freud desde os primórdios da Psicanálise.

Sobre as relações afetivas

Voltando aos relacionamentos em si, Estés (2018) também nos lembra que no âmbito das relações amorosas, muitas experiências não são concomitantes, que elas acontecem numa certa ordem, respondendo a alguns ciclos. Os primeiros encontros não podem ofertar o que demanda tempo para se consolidar, por exemplo.

Nessa espécie de sequência (sempre relativa e provisória, subjetiva a cada um), os diversos ciclos vão se finalizando dentro de uma mesma história, com a ideia de transformação atravessando o processo. Quando se pensa em momentos de falta de confiança e dúvidas recorrentes, temos uma boa noção do que se trata. É a velha noção de não apressar o rio, pois ele tem um ritmo próprio que depende de seus leitos e de suas águas. Jamais será o nosso tempo, ou aquele que idealizamos.

Nessa perspectiva, do ponto de vista do custo energético, os relacionamentos darão sempre algum trabalho. É preciso uma boa dose de trabalho psíquico para encarar os ciclos de vida-morte-vida, para elaborar os lutos e ter energia para as novas possibilidades advindas das transformações. Sobretudo, é preciso muito trabalho para discernir, e talvez esta seja a tarefa mais desafiadora: discernir o que investir para viver, reviver e renovar e o que é preciso deixar morrer. 

A proposta da Mulher- Esqueleto de Estés (2018), vem justamente tentar nos despertar para a importância da presença da morte na vida. Para a importância da força necessária utilizada no ato de caminhar ao lado de alguém, enquanto se caminha também em companhia da finitude, que sempre estará por perto, ainda que negada. No entanto, quando a finitude é acolhida, podemos aprender e crescer com ela.

Ao invés de excluí-la ou desconsiderá-la, ela pode ser convidada a integrar esta terceira ponta triangular da relação. Sem sua ajuda, será difícil atravessar as crises de confiança, de dúvidas e ressentimentos.

Com ela, será possível reconhecer com mais clareza e validar a hora de ir e o momento de ficar. Afinal, a própria Clarissa nos diz que sabemos mais sobre o amor justamente quando, apesar de muitas partes de nosso corpo nos mandar fugir, decidirmos ficar. 

Ficar e desemaranhar o esqueleto. Passar pelo enfrentamento, pelo desânimo, pelo medo e pela lágrima.  Mas a essa altura já saberemos: “O amor tem seu custo. Ele exige coragem” (ESTÉS, 2018, p. 165)

Referência

ESTÉS, Clarissa Pínkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

Presenças, ausências e a inexorabilidade do tempo

barco no lago - tempo

O ano de 2020 (pelo jeito o ano de 2021 segue a mesma tendência), deu uma impulsionada a repensar sobre estas três palavras: presença, ausência e tempo. 

Este texto é um convite para refletir sobre quem está presente , independente de estar perto ou longe e também sobre como ou com quem passamos o tempo. Ou, melhor dizendo, como gostaríamos de ter vivenciar e compartilhar o tempo. Estas questões também me remetem à um filme que durante a pandemia, tenho pensado muito no enredo, chamado “O Sr. Ninguém”.

O filme “O Sr. Ninguém”

Nesta trama, assistimos duas versões para cada um dos mesmos fatos significativos da realidade do protagonista, mas não temos como saber o que realmente foi a realidade vivenciada e o que ele imaginou que teria sido(ou foi uma lembrança encobridora), caso tivesse acontecido de outra forma. Por exemplo, se ele tivesse se casado com esta ou aquela pessoa, se tivesse passado a vida com o pai ou com a mãe.  Sabemos que ele está no final da sua jornada de vida, revendo e repensando sobre o próprio tempo, suas experiências e companhias.

Fato é que assim como o Sr. Ninguém, diante da possibilidade de morte potencializada por estes números assombrosos que temos nos deparado nesta pandemia, costumamos levantar alguns temas assim. Repensar a nossa existência, as nossas experiências e escolhas. Como teria sido se eu tivesse ido…

Como teria sido se eu tivesse insistido? E se eu tivesse feito outras escolhas?  Nunca saberemos. Há quem mantenha ilusões e nostalgias, de possibilidades sem em aberto ( ou impossibilidades?). Antecipamos o nosso próprio “Sr. Ninguém”?

Independente da idade cronológica, estamos sempre em tempo para avaliar e reavaliar algumas decisões, ao menos em alguma medida para decidir se precisamos ou queremos de fato vivê-las.

Há situações que nos fazem querer permanecer nelas e correr delas, ao mesmo tempo, na mesma proporção. É a velha história do prazer-desprazer, que nos traz uma gratificação afetiva ao mesmo tempo que um mal-estar. Vontade de fugir e de ficar. Mas afinal, como saber a hora de ficar ou de validar a permanência? 

Essa dúvida me remete à fala de Clarissa Estés: “Não existe meio que nos permita ir e ficar ao mesmo tempo”. Ela fala isso justamente num capítulo em que precisamos nos reconectar com nossa intuição e enfrentar alguns processos que costumam ser dolorosos ao nosso crescimento. 

Para ela, temos uma espécie de jornada, com várias tarefas a serem cumpridas, na qual precisamos de tempo, enfrentamento e de acesso aos nossos conteúdos inconscientes. Não saberemos lidar com as adversidades prontamente, nem poderemos aceitar tudo, mas há experiências que serão transformadoras, ainda que dolorosas.

O desafio é bancar seus efeitos. E a sensação mortífera da repetição, para inaugurar a diferença. As diferenças serão bem vindas, o inédito, o que pudermos construir para desenvolver um novo direcionamento para nossos desejos.

Muitas situações nos permitem manter flexibilidade e permanência num estado de indecidibilidade provisória. Mas chega um momento em que nos deparamos com uma espécie de encruzilhada, com caminhos de certo modo antagônicos ou inconciliáveis e aí sim, não há como seguir com a ilusão de dois caminhos concomitantemente.

encruzilada

Ir por um significa jamais saber o que haveria no outro, naquele exato momento em que você não o percorreu. Sim, é possível se arrepender, voltar atrás e pretender rever lá na encruzilhada o caminho tomado, mas o tempo… este já é outro. Assim como a vida de Sr. Ninguém, um caminho é um caminho, é único e vem numa espécie de pacote: com as alegrias, os aprendizados, os medos, os efeitos… Não há percurso sem efeito.

As estações mudam, as flores florescem, murcham, as folhas caem, algo acontece. Você já não é o mesmo que estava na encruzilhada antes de ter escolhido o outro caminho, se arrependido da escolha e tentado novamente.

Os impactos do tempo

Renato Russo já havia cantado isso também em Por enquanto: “Mudaram as estações, nada mudou, mas eu sei que alguma coisa aconteceu”. E o que será que aconteceu? A vida aconteceu. Você aconteceu. Estamos acontecendo, o tempo todo.

Como em “O Sr. Ninguém”, só teremos a proporção destes impactos a posteriori, quando algo já tiver nos distanciado da situação. Quando pudermos falar a respeito, ver com menos envolvimento, menos ilusão, expectativa ou mágoa, ver com clareza, elaborar de fato.

Para isso precisamos de tempo também. De distância e também de proximidade – física e afetiva, não necessariamente da mesma pessoa. 

Falando não parece tão difícil, pois o tempo é relativo e estamos por aqui para aprender, essas escolhas que também são atravessadas pelo sujeito do inconsciente, fazem parte. Porém, mas, todavia, entretanto…

Neste percurso existem outras vidas que compartilham tempo e espaço umas com as outras; envolvidas, preocupadas, negligenciadas ou amadas.  Como elas se incluem ou se excluem nisso? Como nesse movimento de ir ou ficar cada um lida com os desdobramentos emocionais que causa no outro?

Estamos num tempo em que não é mais possível manter a ingenuidade de que a responsabilidade psíquica, individual, não é afetada e não afeta a responsabilidade coletiva. 

A expressão “cada um por si” nunca nos foi tão violenta e infeliz.

Estamos todos conectados de algum modo, o COVID está ai para não deixar essa dura realidade passar ilesa. Ainda que o compartilhamento seja um vírus, quando você desrespeita o outro, quando desconsidera o coletivo, você atrapalha não só o seu caminho. 

Tenho ouvido muito algumas expressões como “responsabilidade afetiva” e “lei do retorno” ultimamente. Penso que aqui o objetivo não é encontrar um nome em si para definir este processo, mas debatermos modos de sermos mais responsáveis psiquicamente. E lembrar que de alguma forma os efeitos estão mais imediatos, pois as conexões se estabeleceram numa outra configuração a partir dos riscos de contaminação.

De alguma forma, em alguma medida, da nossa posição de sujeito, somos responsáveis, já nos disse Lacan. 

Uma questão importante, que penso que a ética nos convida a fazer neste momento, é sermos claros.  E a clareza precisa ser de cada um consigo mesmo e de cada um para com os demais.

Em tempos em que não temos leitos nos hospitais, vacinas nem para as pessoas mais vulneráveis e que o risco da morte aproximou a todos independente das suas diferenças, a responsabilidade com a palavra, com os afetos, presenças e ausências tornou-se ainda mais significativa.

São tempos de menos ilusões e mais validações do que realmente importa. Tempos que como já disse Drummond, “em que os ombros suportam o mundo”. 

Assim, diante do peso nos ombros de todos, a dignidade e a humildade se tornam tão especiais.

É preciso coragem – para permanecer ou de se retirar; seja da vida do outro, de um curso, de um trabalho, de uma chamada online, de um encontro virtual que não lhe faz sentido naquela ocasião, de tudo que aumenta ainda mais o peso nestes ombros.

Há presenças que nos fazem companhia à distância, que dividem este peso conosco, por uma mensagem, um áudio, um vídeo, um meme compartilhado. Há novos modos de se perceber as presenças e ausências.

Há presenças que nos ajudam a seguir na pandemia, apesar de todo o caos que ultrapassa o corona. Que se presentificam com palavras, olhares e gestos, independente da distância. Também há aqueles que mesmo pertinho não comparecem, pois por alguma razão, não estão ali. Sim, há presenças ausentes também.

Clinicamente, ouvimos muito isso todos os dias e até sentimos via contratransferência estes efeitos. Precisamos avançar para além dos pesos nos ombros, do desperdício de tempo de vida e das presenças ausentes.

Nos afastar do peso além do necessário e não intoxicar ainda mais nossa humanidade. Ainda temos algum tempo, mas já não é mais como na música Tempo perdido “temos todo tempo do mundo”, tanto tempo assim, 2020 nos ensinou e 2021 continua nos ensinado, que já não temos.

Agora é importante cuidar para não “matar o tempo”, pois como já nos advertiu Machado de Assis, (quando) “matamos o tempo, o tempo nos enterra”. Por mais conexões, mais presenças, mais aqui e agora.

Novos cenários e perspectivas para os efeitos do “Complexo de Cinderela” no século XXI

Há tempos venho acompanhando discussões em torno das histórias de contos de fadas.

Entendo que as versões narradas podem ser ou não fiéis às histórias milenares, que enaltecem os aspectos fortalecedores, as mensagens subliminares de reconhecimentos e resoluções para os conflitos psíquicos.

Obviamente, não podemos desconsiderar o aspecto da passividade que possa se promover a partir de uma narrativa na qual uma menina protagonista é orientada a esperar com passividade e paciência, que logo mais será “salva” por um príncipe.

A partir do surgimento deste príncipe, tudo parece supostamente solucionado e a vida da protagonista estará configurada numa áurea de felicidade por via de acesso ao casamento, este formato de domesticação do amor romântico.

Sabemos que este suposto final nada mais pode ser que o início de um novo ciclo, que traz inúmeros processos de aprendizados e desafios e não cabe neste formato happy end, não se trata de um ponto de chegada, mas de um fluido acontecer, atravessado por um cotidiano e marcado por uma história de vida.

Na contemporaneidade temos personagens como Valente, temos Malévola, temos os filmes de grande bilheteria que não terminam mais num formato de “felizes para sempre”, como por exemplo em “Como eu era antes de você”.

Nessas três películas que menciono, todas trazem outras saídas para as mulheres, se contrapondo à passividade e à busca pela “solução” do seu desamparo constitucional em outras pessoas.

Esse príncipe idealizado e que não corresponde aos homens reais da vida cotidiana, sobretudo por estas expectativas criadas, não são o objetivo destas personagens que podem inclusive, proporcionar um final feliz a si mesma, sentada sozinha num café em Paris, onde escolheu estar. Ou ainda, insistir no direito de seguir a própria vida, sem precisar compartilhá-la amorosamente, como decidiu Valente.

Sobre o Complexo de Cinderela

Por isso, acho válido relembrarmos o clássico e ainda tão atual livro de Colette Dowling, cuja tese sustenta que o “Complexo de Cinderela” consiste numa espécie de “rede de atitudes e temores profundamente reprimidos que retém as mulheres numa espécie de penumbra e impede-as de utilizarem plenamente seus intelectos e criatividade.

Como Cinderela, as mulheres de hoje ainda esperam por algo externo que venha mudar sua vida.” Colette nos lembra que muitas mulheres ainda aguardam a chegada de seus príncipes, como se pudessem na sequencia, delegar a outra pessoa, o comando e a direção de suas vidas.

Gosto de pensar esta noção de Complexo de Cinderela com as personagens Carrie e Charlote, da Série Sex and the City.

Mulheres inteligentes, independentes e bem sucedidas, às voltas com recorrentes encontros amorosos curiosos e por vezes bizarros, repetidos no afã de encontrar “o cara”.

Espécie de ideal de “salvação” que vem de fora, sobretudo deste homem fictício e idealizado na figura de um príncipe (des) encantado, o lance dos sapatos é bem interessante de pensar como metáfora, em Cinderela e nesta série também.

Contudo, acho que fica um tanto ambivalente o que representam estes sapatos em Sex and the city, afinal. Por um lado, a espera não é passiva, já que Carrie, encantada por sapatos, já comprou o equivalente ao valor monetário de um apartamento.

Embora ela faça as próprias escolhas e não precisa bancar o lugar de princesa que espera essa sapatinho encaixar certinho, sabemos que ela “agarra” num sapatinho azul bem específico, envolvido no seu casamento que não acontece. Haveria então um resquício deste efeito de Cinderla em Carrie, justamente ela, que parece tão “resolvida”, será…

Para Carrie, em especial, seu eleito “ Big” se torna a encarnação deste príncipe que na verdade é tão realista ao ponto de desistir do casamento minutos antes.

Bem como as coisas são, os homens da série também são reais, criam expectativas, se atrapalham, se apaixonam, têm medo e tudo mais que se possa imaginar.

Sex and the City teve grande alcance no público feminino, com seis temporadas e dois filmes.

Acredito que esta série tem a habilidade de reunir os resquícios destes aspectos do imaginário feminino, nestes processos de sedução da “mascarada”, de ser tudo para o outro ao mesmo tempo em que busca amparo neste outro, sobretudo nos homens.

Assim, concomitantemente as personagens nos fazem rir dos desencontros cotidianos e criam espaço para discussão e revisão de tudo isso que nos afeta, direta ou subliminarmente, sem deixar de enaltecer o que penso ser mais interessante que a série veicula: a força da coletividade feminina, que é tão potente nestas quatro amigas.

Uma espécie de bálsamo para todos esses resquícios que nos afetam e ainda não elaboramos, embora sejamos gratas à todas as mulheres que vieram antes, e começaram o trabalho por nós.

Voltando em Colette Dowling, a questão que reverbera para mim diz de como as mulheres embarcam ou desenvolvem este complexo.

A autora nos provoca a refletir sobre uma espécie de mensagem subliminar que nos promete uma espécie de recompensa ao silêncio, à submissão e ao bom comportamento.

Basicamente, ao nos percebermos frágeis, restaria a passividade e a espera, desta suposta salvação que chegaria como espécie de prêmio, trazida por este ser-fora-do cotidiano tão bem representado pelo “Big”, este homem enigmático e bem sucedido, mas que ninguém sabe como chama, nem o que ele faz exatamente.

Como nos príncipes das histórias é um lance meio mágico, que ninguém sabe explicar seu aparecimento. No caso de Big, suas próprias razões também não.

Na prática, nesta semana em que tanto se falou sobre a mulher e o feminino, acho que é hora de parar para avaliar se conseguimos este árduo processo de conciliar tudo que nos foi atribuído. Se precisamos disso e principalmente, se é isso que queremos.

Se estamos inseridas em relacionamentos onde existe equilíbrio entre idealização e realidade, entre dar e receber e sem desperdício de energia,de potencial e se não estamos a desperdiçar nós mesmas, sobretudo.

Não só nossos direitos parecem estar sempre ameaçados de alguma forma, mas nós mesmas quando nos deixamos de lado para buscar esses finais felizes de histórias que ouvimos. Como nos lembra Colete:

 “Nós sabotamos nossa própria originalidade.  Andamos em segunda – evitando as marchas mais potentes que possibilitam maior velocidade – como se tivéssemos sido programadas para fazê-lo. E na realidade o fomos”. 

Em busca da superação

O desafio está sobretudo em encararmos nossos registros inconscientes que permanecem enquanto conciliamos nossos desejos e projetos possíveis, dando espaço a novas criações e invenções.

Enquanto nos enveredemos na ideia de salvarmos a nós mesmas, as forças de compartilhamento podem contribuir com a desestabilização da ilusão de que a salvação está fora.

Que massacrar o amor próprio para criar um lugar para o outro pode ser não só fadado ao fracasso, mas também correr o risco de que isso possa retornar para nós no formato de fúria e intolerância, o que vai na contramão das parcerias (par-seria possível?) pautadas em reciprocidade e respeito.

Não importa qual sapatinho se espera, estamos em tempo de buscar por ele, pagar por ele ou aceitar de presente de uma boa amiga.

Separando o príncipe do sapatinho que ele traz, há mais chances de encontros com pessoas reais.

Sapatinhos, anéis, casas ou o que quer que seja o presente de um “príncipe encantado”, pode ter um alto custo energético, e isso não costuma ser percebido no embrulho.

O sapatinho da cinderela pode envolver uma entrega física, psíquica ou custar a própria vida. Sem a metáfora do encaixe perfeito do sapatinho somos mulheres reais como Carrie e suas amigas.

Mulheres que buscam reciprocidade, compartilhamento e risadas sinceras, mais que finais felizes.

Na dúvida, sabem que tem um colo das amigas antes de mergulhar de volta no mundo lá fora. Sim, existe vida lá fora, muita vida. Mas a nossa relação com o desamparo, a gente resolve internamente.

Com a ajuda das amigas e das analistas.

Referências

DOWLING, Colette. Complexo de Cinderela. São Paulo: Melhoramentos, 1995.

LOVELACE, Amanda. A princesa salva a si mesma neste livro. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

Transformações e transposições por meio de contos e histórias

livro mulheres que correm com os lobos

Por que algumas histórias são atemporais e ultrapassam barreiras geográficas?

Para mim, desde que me entendo por gente li o mundo por meio de histórias.

Cresci achando a escola lenta, não via muito sentido no ritmo em que os conteúdos eram ensinados.

Já as histórias… Elas me transportavam, num outro ritmo, para um outro tempo.

Sou muito grata por ter crescido numa casa cheia de livros e por ganhar com frequência histórias em quadrinhos do meu pai.

Algumas eu não entendia prontamente, em outras eu era provocada a refletir. Algumas eu decorava, passava horas seguidas concentrada na leitura.

Outras eu ainda não tinha tantos recursos cognitivos para entender a mensagem.

Comecei a ler aos 4 anos e sempre li com muita seriedade, por mais lúdicos que fossem os conteúdos.

As histórias sempre foram o meu refúgio e diversos personagens me apontaram muitas direções interessantes, por assim dizer.

Quando cresci continuei apaixonada pelas histórias.

Não entendia o incômodo dos meu colegas quando tínhamos que ler Machado de Assis ou Camilo Castelo Branco, no ensino médio.

Eu mergulhava nas histórias e para mim, elas eram a melhor parte das aulas.

Quando comecei a estudar Psicanálise, um dos primeiros livros que conheci foi “A Psicanálise dos contos de fadas”, do Bruno Betteilheim.

Mais de vinte anos depois ainda carrego o meu exemplar, embora tantos outros tenham surgido nesse percurso; “Fadas no divã”, “A Psicanálise na Terra do Nunca”, “Freud e o estranho – contos fantásticos do inconsciente”, são alguns dos meus favoritos.

Recentemente, me encantei com Mulheres que correm com os lobos e senti que estas histórias em especial, carregam mensagens mais condizentes com meu momento de vida, bem como com o momento de tantas mulheres mundo afora.

Sinto que estas histórias, em especial, tem um momento oportuno para que quem lê possa se conectar com elas.

Mas afinal, como as histórias nos afetam e o que ensinam?

freud e o estranho

Sem pretender responder totalmente à esta pergunta, pois acho que os efeitos de desdobramentos das histórias não cabem em palavras, vou me arriscar a algumas colocações.

Algumas histórias tem um ritmo e um acalento próprios, são capazes de nos fascinar e nos possibilitam entrar em contato com o que desconhecemos de nós.

Outras, deixam verdadeiras lições, como espécie de alerta para o que pode nos acontecer se investirmos muita energia em nosso potencial destrutivo.

Várias outras nos lembram de nos conectar conosco, com a natureza, com quem amamos. Tem história que nos ajuda a encontrar a nossa turma, ou a valorizar a nossa ainda mais, se já tivermos uma.

Podem também nos recordar o valor da sororidade, da reciprocidade, de sabermos que não estamos tão sós. Não mais.

Há aquelas simples, mas tão simples como a simplicidade da vida que a gente tanto complica: no final das contas, não é difícil saber o que realmente importa. 

Por vezes, as histórias nos afetam subliminarmente, o que penso ser o mais encantador, ao mesmo tempo que muito potente.

Há um quantum de inexplicável, de ser sentido e elaborado, num outro plano, que não o da razão.

Penso que as histórias ativam mecanismos adormecidos de associação, o que nos faz experienciar a comoção, a identificação e a reviver ali junto aos personagens, nossas angústias, medos, alegrias e tantas emoções.

Sobre isso, Tavares (2007), nos lembra que fantástico e inconsciente, são vasos comunicantes.

Há sempre um quê de fantástico nas produções do inconsciente, basta pararmos para olhar um pouquinho.

Foi levando em conta a palavra unheimlich, que Freud sugeriu haver uma diferença entre o termo reconhecido na literatura e o vivenciado no cotidiano.

Essa estranheza familiar que nos ronda, é só parar para dar uma olhadinha e constataremos que ela está por ali.

Histórias nos conectam com nosso arcabouço subjetivo e nossa simplicidade (e complexidade) cotidiana, dizendo sempre algo do contemporâneo por mais antigas que sejam. Não importa de qual século ou milênio venha sua origem.

O importante é se faz algum sentido para nós, bem como, o que faremos com elas.

“Nossas histórias favoritas acabam sendo fontes de inspiração e identificação, refinam ou embrutecem nossa sensibilidade, nos ampliam ou cerceiam os horizontes, ajudam a penetrar na realidade ou a evita-la, sendo, portanto, decisivas para o que nos tornamos”. (CORSO, 2011, P. 13)

Por que algumas histórias são difíceis ou não fazem sentido algum?

Quando recusamos ou tememos entrar em contato com alguma história, isto também pode sinalizar para algo significativo, mas que não está em tempo de ser visto. 

Na verdade, quando lemos ou escutamos contos e histórias, utilizamos nossos próprios recursos e mecanismos de defesas.

Percebemos e interpretamos do nosso jeito, no nosso tempo. Daí a necessidade de perceber nossa disposição psíquica para entrar em contato com alguns temas.

Além disso, não é por acaso que algumas histórias nos causem estranheza, o unheimlich freudiano, que nos é ao mesmo tempo familiar e estranho.

O desafio está em perceber que talvez justamente ali, aponte para onde temos mais necessidade de nos demorarmos um pouquinho.

Na aversão e no incômodo pode estar escondido um portal. Um dia será tempo de atravessá-lo.

E para finalizar, lembro uma passagem de Mulheres que correm com os lobos, quando Clarissa sabiamente nos sugere:

“As instruções encontradas nas histórias mostram que o caminho não terminou, mas que ele conduz as mulheres mais longe, e ainda mais longe, e ainda mais longe, na direção do seu próprio conhecimento” (ESTÉS, 2019, p.19)

Referências:

CORSO, D. CORSO, M. A Psicanálise na terra do nunca: ensaios sobre a fantasia. Porto alegre: Penso, 2011.

ESTÉS, C.P. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 2018

Freud e o estranho: contos fantásticos do inconsciente /organização e seleção Braulio Tavares; contos de E.T.A Hoffmann [et al.] Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.

Como nossos pais

como nossos pais

Outro dia fiz uma enquete no Instagram e descobri que a maior parte das pessoas que se manifestou acredita que já não “somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.

Uma boa parte acredita que sim, mas teve quem se manifestou dizendo que não era “bem assim”, que não necessariamente vivemos ou não como eles, que existem variações.

Teve quem disse que “tem a coluna do meio”.

Não foi só pelo fato ter assistido recentemente “Como nossos pais” nem por gostar tanto de escutar Elis, Maria Rita e tanta gente cantando esta música que divulguei esta pergunta, foi mais no sentido de promover a reflexão e provocar um debate.

Venho refletindo há anos sobre como as pessoas resistem a perceber e admitir algumas semelhanças com seus pais. Para tanta gente, se dependesse de escolha consciente seria uma espécie de “decisão”, mais frequentemente a de não parecer, somente.

Contudo, na prática não é tão simples, e não é difícil verificar a energia investida nesses processos de insistir tanto em ser diferente, até mesmo em brigar com a mesma intensidade com que o outro briga, tentando não parecer com este outro.

A questão é complexa, não se trata de escolha consciente.

Sobretudo por estas supostas escolhas conscientes, por meio das quais muita gente insiste em afirmar nada parecer com os pais, é que vemos evidenciar ainda mais os tais aspectos criticados-projetados, que geralmente não percebem nelas mesmas.  

Isso me remete à fala de Dunker (2019), quando nos diz que as vezes esperamos que o outro interrompa uma repetição que nós mesmos estamos a repetir (já que inconscientemente estamos a contribuir com o processo) e acrescenta: “É como alguém fazendo caretas diante de um espelho e achando chato o que vê pela frente” (DUNKER, 2019, p. 201)

Percebo que na busca por produzir a diferença concretiza-se ainda mais a semelhança. Pensando com os pressupostos freudianos, não temos como escapar dos nossos processos de identificação com nossos pais, ou quem quer que tenha feito as funções parentais em nossas vidas.  

Sobretudo em alguns pontos mais específicos, como as identificações na fase do Complexo de Édipo, estamos sim, inseridos numa certa trama psíquica. Gosto muito de pensar com Freud porque ele também nos apontou saídas, não só “explicações”.

Na verdade, algumas questões “Freud explica” sim, mas deixa para nós a responsabilidade do que fazer com a explicação depois (ainda bem, ou não seria Freud).

Ainda assim, precisamos lembrar de que parecer não é destino, condenação ou karma, nem é porque “filho de peixe peixinho é”.

Não é, não precisa ser, felizmente. Em Psicanálise trabalhamos com a perspectiva de invenção, de produzir e inaugurar diferenças nas repetições, o que geralmente demanda um demorado trabalho psíquico.

E quando termina o trabalho? A análise é terminável ou interminável?

Tema para outro texto, mas fiquemos com uma proposta das mais interessantes “intenções” da análise, que é justamente repetir menos, cada vez menos e com alguma diferença – e mais responsabilidade psíquica, ainda que as repetições não possam ser cessadas completamente.  É a proposta freudiana: “Recordar, repetir e elaborar”.

Sobre o filme Como Nossos Pais

Como nossos pais, filme de Laíz Bodansky traz um enredo muito interessante para pensar sobre essa questão.

No afã de fazer diferente, a repetição continua atuante, ainda que num outro formato.

Entrar em contato, falar sobre e lidar com a finitude podem contribuir com novas configurações e de certo modo possibilitar espaço para a diferença, e é com isso que essas personagens contribuem.

Mostrando de modo bem realista o cotidiano das relações pais e filhos, com foco na relação mãe-filha, bem como as recomposições de novas famílias, o filme Como nossos Pais é uma boa pedida para pensar no cotidiano, sobretudo por ser um filme nacional, literalmente, falando a nossa língua.

As mulheres nas fachadas de “dar conta de tudo”

A protagonista Rosa, uma mulher de 38 anos, desejava escrever peças teatrais mas se ocupava com escritas de folders de cerâmicas de banheiro, em conflito com seus princípios feministas e o modo como estava sua vida.

Sentia-se uma mulher exausta há 15 anos e admitia: “Eu sou pura fachada, nunca banco meus pensamentos”.

Insatisfeita em diversos âmbitos, Rosa precisa lidar com uma revelação que a estremece, enquanto lida com o casamento, o trabalho, a maternidade, a proximidade de perder a mãe e ainda: “os fantasmas do meu pai, não!” (este é um dos melhores atos falhos em filmes, na minha opinião).

 Como nossos pais lida com a questão da sobrecarga proveniente das múltiplas funções em que a mulher abarca na nossa cultura.

Conforme diz Rosa: “Eu não quero mais ser uma mulher que dá conta de tudo. Eu não dou conta de tudo”.

Desde as divisões das tarefas domésticas até a certa “naturalização” que se atribui às traições masculinas, o filme Como Nossos Pais coloca em debate as relações maritais, mentiras, ocultações familiares e os papéis de gênero.

Destaco alguns pronunciamentos das personagens para endossar essas argumentações.

Sobretudo o fato de Clarice (mãe de Rosa) acusar a filha de ser “muito dura” com as próprias  filhas e não perceber que Rosa somente repetia a aspereza de Clarice para com ela: “eu devo ter alguma memória de alguém que foi muito duro comigo!”.

Tudo isso é dito, o que é bem interessante. Aparentemente, as personagens de Como nossos pais são mais antenadas emocionalmente para estas questões, ainda que por vezes não saibam muito como sair desta situação.

Vemos a repetição também na escolha das parcerias amorosas; Dado, marido de Rosa, assim como Homero, o pai da personagem, é super engajado num discurso interessantíssimo, mas que o desenrolar nos mostra incongruente com as ações de ambos.

Assim como seu pai, seu marido é aquele que fala bonito, mas que a deixa “a ver navios” quando a ação/ realização é necessária. As relações extra conjugais também guardam semelhanças nas repetições, de todas as personagens.

O filme Como nossos Pais tem vários outros pronunciamentos super interessantes para que se reflita a questão, algumas que destaco aqui para compartilhar com vocês:

“A minha mãe esqueceu de me avisar e eu demorei muito para aprender” (Clarice); Meu pai era assim, meu avô era assim” (pai de Rosa) e ainda: “Um segredo muito antigo que aprendi com minha mãe, que aprendeu com a mãe dela e que agora vou te ensinar” (Rosa).

O que inaugura a mudança e a diferença?

A relação de Rosa e Clarice começa a mudar quando a finitude dá a sua aparição: diante da morte iminente, Clarice compartilha os segredos ocultados, ajuda a filha entender que cada um tem suas próprias razões para suas decisões e vai na companhia da filha escolher o último par de sapatos que comprará diante do avanço de sua doença.

Os calçados, que nos auxiliam no nosso caminhar e se contrapõe aos sapatos irreais das princesas dos contos de fadas, são bem emblemáticos neste enredo, o que poderia até render outro texto.

Vou me restringir apontando o  all star que Rosa joga na lata do lixo, o “all star azul” da conexão com a música de Nando Reis e de sua experiência com Pedro e de quando ela aparecia como “adolescente – estagiária” no trabalho que lhe sugava as energias e com o qual Rosa não tinha conexão.

Jogar esse all star azul fora seria uma tentativa de sair da incoerência entre seus discursos e suas ações? talvez. Novos caminhos, novos calçados para a caminhada?

Fato é que o clima final é de renovação, de trocar o carro pela bicicleta, de assumir que o casamento não está bom como está e que algo precisa ser feito.

Tempo de colocar em palavras.

De encarar despedidas inevitáveis. De vida que segue. Igual, mas bem diferente.

E quanto à pergunta inicial, penso que podemos nos repousar no conceito de indecidibilidade e pensar que ao mesmo tempo que somos os mesmos também somos outros, vivemos da mesma forma e de uma forma diferente, concomitantemente.

Desde que não sejamos tão resistentes e inflexíveis a proposta é que possamos avançar, com menos sofrimento e mais saúde psíquica, principalmente.

Assista abaixo o trailer oficial do filme:

Referências

FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar [1914] In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

DUNKER, C. THEBAS, C. O palhaço e o psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.

A Vida Em si: Narrativas da Vida Como Ela é

a vida em si

Confesso que a primeira vez que assisti “A vida em si”, fiz algumas pausas e achei difícil acompanhar o enredo nos primeiros minutos. 

O filme não é tão fluido como os convencionais, tem um ritmo próprio, mais ou menos como os movimentos da vida (tem momentos em que dá uma agarrada, outros que a gente se pergunta: “o que está acontecendo, afinal?”). 

Assim como a vida, “A vida em si” faz reverberar emoções muito variadas no telespectador. 

O ritmo e o formato não linear fazem todo sentido com a proposta que a película veicula, o que só é possível entender depois, nos últimos capítulos.

“La vida mesma”, traduzido como “A vida em si” é um filme sobre lealdade, cumplicidade, conexões, amores, amizades, e também sobre ciúmes, insegurança…

Leia mais: Conheça minha análise sobre a Série Modern Love…

E também sobre o fato doloroso da existência, da impermanência e de guinadas surpreendentes – pode estar tudo maravilhoso e minutos depois a vida pode se transformar em desespero e sofrimento.

Acidentes. Fatos inesperados. Mortes inevitáveis e suicídios (quase) evitáveis.

O amor em A Vida em Si

amor em a vida em si

No meio de tanta dor, brota o amor.

O movimento das narrativas em “A vida em si” também é bem semelhante à música de amor inserida no álbum melancólico de Bob Dylan. 

O cantor tem um espaço emblemático nesta história, por ele mesmo, pelo seu álbum mencionado e por nomear a personagem Dylan. 

Acho que essa é a grande chave para pensar esse enredo; no meio de tanta dor, brota o amor, na mesma esquina chorosa e trágica em que anos antes a vida se desestabilizou. 

O amor, em seu sentido mais amplo, de uma força poderosa para manter conexões e reverberar em outras gerações, surge como a canção no álbum de Dylan: como uma grande surpresa e que modifica tanto a vida.

O deslocamento temporal também nos remete a pensar na noção de “herança psíquica”, sobre tentar compreender se o que vivemos como realidade também não é uma espécie de efeito de outras experiências, de outras identificações e referências provenientes de nossa linhagem familiar. 

Embora aponte para a repetição inevitável, também deixa espaço para a invenção, para a diferença. 

Lindamente o filme narrado por Elena, a quarta geração apresentada no enredo, ilustra como fatos e afetos vivenciados antes de nossos nascimentos podem reverberar em nossas vidas… 

Nos faz pensar na inexorabilidade da morte, e no quanto lutos sobrepostos interferem no desenvolvimento das pessoas e afetam os modos de viver e relacionar.

Vivendo como os nossos pais: a repetição inevitável

“A vida em si” me faz associar à voz de Elis Regina cantando: “Ainda somos o mesmo e vivemos como nossos pais”. 

Temos no enredo várias gerações de mulheres que encontram o amor como compartilhamento e uma via de continuidade. O amor é narrado como nobre, sublime, acolhedor e conector. 

Abby e Will, assim como Dylan e Rodrigo repetem essa experiência de parceria amorosa tão validada por seus pais e avós que reverberam no livro/discurso de Elena. 

Uma conexão tão profunda que faz com que Will não consiga viver sem Abby e que Dylan e Rodrigo não passem sequer uma noite separados por décadas, desde o dia que se conheceram. 

Conexões e perdas aparecem em formatos de repetições, assim como os acidentes: o primeiro deixa Abby órfã e o segundo deixa Dylan órfã, nos remetendo ainda a pensar nos constantes ciclos vida-morte e vida pelos quais todos passamos.

O nascimento de Abby coincide com a trágica morte de sua mãe, que de certo modo culmina no suicídio de seu pai. 

Rodrigo estava presente na cena e de certo modo até contribuiu com ela, obviamente sem dolo. 

Na sequência Abby enfrenta a morte da avó e do seu cão.

Precisamos ainda lidar com a morte de Isabel. Abby repete a história de sua mãe, crescendo sem seus pais. 

Aprofundando na análise do filme

Pensando com Gutfreind (2010), por meio das histórias de vida, podemos considerar a herança psíquica como uma espécie de “rascunho” através do qual uma nova história será escrita. 

Neste novo rascunho, vamos escrevendo e traçando novas conexões: “a narrativa é a ponte entre o eu e o outro (pai, mãe, substitutos) que nos fará sentir-nos vivos verdadeiramente”. (GUTFREIND, 2010, p. 30) 

Em “A vida em si” Elena compartilha conosco a história de seus antepassados, que já passou de rascunho para um livro publicado. 

Narrar, traduzir afetos em palavras e textos é também um modo de inscrição. De registro; “Eles acharam a música de amor, no álbum melancólico de nossa família” (Elena). 

De acordo com Vasconcelos e Lima (2015), podemos pensar a narratividade como um modo de lidar com o passado e produzir um presente inédito. 

O filme deixa clara a mensagem de que “todo narrador confiável é a vida em si!”. 

Fato é que embora a veracidade de toda narrativa seja questionável, já que a verdade é sempre subjetiva, parcial e provisória, compartilhá-la pode ser elaborar e dar prosseguimento, amorosamente.

Pela tese de Abby sobre narradores confiáveis, sabemos que nas narrativas há alinhavos, continuidade, interpretações e um quanto de elaboração e invenção. Assim é. 

É a vida mesmo, a vida em si.

Referências

GUTFREIND, Celso. Narrar, ser pai, ser mãe & outros ensaios sobre parentalidade. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. SILVA, M.C.P. A herança psíquica na clínica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 

VASCONCELOS, A.T.N., LIMA, M.C.P. Considerações psicanalíticas sobre a herança psíquica: uma revisão de literatura.Cad. Psicanál. CPRJ, Rio de Janeiro, v. 37, n. 32, p. 85-103 Junho de 2015.