Repetições e criações: repetimos o mesmo ou permitimos o aparecimento do inédito?

Depois de um percurso pela Psicanálise começamos a ver certa obviedade em algumas situações e nos esquecemos de que nem todas as pessoas envolvidas podem estar percebendo da mesma forma.

De um modo geral, escuto que seria mais interessante ou mais necessário que o “livre arbítrio” desse conta de promover as “escolhas saudáveis”, que “deveria” ser assim “sempre”, sobretudo quando se pensa em escolhas conscientes e racionais. A bizarra proposta de “consertar” tudo, motivar a si mesmo, desde que você gerencie suas escolhas. Sabemos que a castração é um impeditivo e a proposta de tal felicidade não se cumpre, como bem advertido por Freud.

Quando paramos para olhar de perto, desde os primórdios da Psicanálise começamos a lidar com o fato inevitável de reconhecer que não é bem assim que acontece. As pessoas repetem as insatisfações provenientes de seus registros infantis, sem querer e mesmo sem saber.

O que significa repetição na psicanálise?

Como já bem dito por Freud, repetem, ainda que sem saber que o fazem. Estranham, mas permanecem na situação, porque é ao mesmo tempo familiar – estranha, o que faz querer sair e ficar. Por vezes, a ambivalência se dá na mesma proporção, paralisando os movimentos desejantes e deixando a sensação de estagnação.

Penso que principalmente no quesito “compulsão à repetição”, aos leigos chama atenção a questão “como podemos nos enveredar por situações que nos fazem mal?”, “se já aconteceu tal coisa tantas vezes, o que está esperando?” e por ai vai … Observando mais de perto, percebemos que inúmeras situações nos fazem bem e mal ao mesmo tempo. Há um ganho proveniente do reconhecimento da familiaridade, do conforto, do conhecido, do já visto.

Pois bem, o inconsciente e seus trilhamentos nos direcionam para as situações familiares, que combinam com nosso repertório, seja ele qual for. Até sermos atravessados pelas palavras provenientes das produções discursivas realizadas no divã. Aí o capítulo da história passa a ser bem diferente.

Passa a ser difícil permanecer em situações que nos trazem a sensação de já saber o final do filme, quando é demasiadamente angustiante, torpe ou sem emoções que façam valer a pena. Esperar para constatar a frustração já sinalizada, ou, reconhecer o sofrimento, o mal-estar e a repetição, também tem efeitos. Um deles pode ser o da impossibilidade em continuar o processo repetitivo e paralisante.

Lendo Alain de Botton, senti de compartilhar um fragmento no qual o autor ilustra tão lindamente estes aspectos, que dialoga muito oportunamente com estas considerações:

“Acreditamos estar buscando a felicidade no amor mas o que queremos é familiaridade.  Tentamos recriar em nossos relacionamentos adultos aqueles exatos sentimentos que conhecíamos tão bem na infância – e que raras vezes se limitavam a ternura e afeto. 

Recordar, repetir e elaborar

O amor que a maioria de nós experimentou bem cedo vinha misturado a outras dinâmicas mais destrutivas: o sentimento de querer ajudar um adulto fora de controle, de privação de afeto de um dos pais ou medo de sua raiva, ou de não ter segurança suficiente para comunicar nossos desejos mais complicados. […] Saímos em busca de pessoas mais interessantes, não por causa da crença de que a vida com elas será mais harmoniosa, mas pela sensação inconsciente de que, de uma forma tranquilizadora, elas vão parecer familiares em seus padrões de frustração”. ( BOTTON, 2017, p. 55)

Botton, nos lembra que quando tudo nos parece equilibrado demais e tranquilo demais corremos o risco de achar “estranho” e “imerecido”. A partir daí e em função disso, vamos produzindo os mais variados arranjos, que costumam mudar de direção conforme a experiência analítica. Há um certo trevo no caminho em que se escolhe quem prevalece: o velho e paralisante aspecto mortífero do gozo ou os movimentos sublimatórios, desejantes e vibrantes que nos impulsionam?

A repetição ou o trabalho criativo de inaugurar o inédito? Por isso, costumamos dizer que a análise não tem preço e sim valor. Um valor sempre muito singular e reconhecido por quem o banca. Um valor que está em prol da vida, que possibilita bancar o desejo.

Dessa forma, é oportuno e fundamental lembrar a função do processo psicanalítico, em seus ancoramentos nos pressupostos freudianos em “recordar, repetir e elaborar”, via transferência. Após um percurso analítico, não estaremos prontos, acabados ou curados (de nós mesmos, sobretudo). 

Mas estamos mais apropriados de nossos desejos, que nos sustentam em sair da sala de cinema ou parar o filme quando a gente já sabe que não quer, não pode ou não faz bem continuar investindo mais afetos e tempo no enredo.  É preciso reconhecer a hora de se retirar. Bom mesmo é quando o filme é tão bom que literalmente a gente paga para ver de novo. E ainda quer levar alguém junto, para compartilhar a experiência. Quando é possível gargalhar de novo, chorar de tanto rir, quando o riso é frouxo, é fácil… ou chorar de emoção, quando o choro funciona como espécie de bálsamo para a alma. A gente até fica sentado no cinema com os olhos lacrimejantes, vendo as letras subirem.

O desafio está justamente em reconhecer os efeitos psíquicos e decidir a hora de ir ou ficar… e seja qual for a decisão, que seja sem vacilo e sem dor.

Como já cantou Milton Nascimento, tão lindamente na canção composta por Telo Borges, intitulada “Voa bicho”: “Como um bicho que sai do ninho, sem vacilo nem dor na minha vez […] andorinha faz a canção”.

Referências

BOTTON, Alain. O curso do amor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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