As flores de plástico não morrem

Uma afirmação que sempre me intrigou foi: “que linda, parece artificial”. Já ouvi muitas vezes essa expressão, sobretudo em relação às flores, pets e afins. A ideia de que são tão belos que nem parecem de verdade me parece curiosa … No entanto, sempre pensei o oposto, que o mais interessante e admirável fosse justamente o que parecesse mais verdadeiro, com toda a complexidade que isso comporta.

Para mim, as fores artificiais quando são bonitas são justamente porque são parecidas com as naturais e não o contrário. Verdadeira, natural, passageira, transitória, perecível, autêntica, seja qual for a palavra … Para mim, parece mais interessante que artificial. Penso isso muito antes das redes sociais, que rende uma outra reflexão nessa linha do artificial, dos filtros, etc.

Tal reflexão era uma questão infantil para mim. Afinal como é isso do lindo ser o artificial? Anos depois, para minha grande surpresa e admiração descobri em “Sobre a transitoriedade” Freud questionando justamente esta questão. O psicanalista indagava se uma flor seria mais bela por seu aspecto transitório, ou se o fato de se deteriorar e mesmo desaparecer com o tempo, diminuiria seu valor.

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Há beleza no artificial?

“Flores”, a famosa música do Titãs, título bem oportuno para este questionamento, sugere que as flores, que estão por todo lado, nos lembram a finitude: afinal, nesta canção, “as flores têm cheiro de morte”.

As flores estão por toda parte: em cima do telhado, debaixo do travesseiro, “há flores em
tudo que eu vejo”. A finitude, embora tantas vezes negada, está por aí o tempo todo. A vida inteira, por todos os cantos que a natureza nos alcança e o artificial não dá conta de tamponar a finitude. Só quem se dá ao luxo de parar vez por outra no aqui e agora vai se dar conta disso.

Parar para contemplar a natureza, seus ciclos, seus movimentos, transformações,
encerramentos e nascimentos. Parar para olhar pode ser aversivo e interessante ao mesmo tempo, dependendo do destino que daremos a tal constatação. Pode ser sofrer pelo fato de que todos os ciclos se concluem, seja pela beleza e grandiosidade que há neste mesmo fato.

“A dor vai curar essas lástimas/ o soro tem gosto de lágrimas/ as flores tem cheiro de morte / a dor vai fechar esses cortes”. Faremos nossos percursos com lágrimas, dores e finitudes, com mais ou menos filtros, com mais constatação ou mais fuga, cortes mais reais ou mais simbólicos, dependendo de nossos recursos psíquicos diante das circunstâncias.

As lágrimas fazem parte também, e requer uma boa dose de disposição para continuar insistindo em reprimi-las. As lágrimas podem ter poder curativo e restaurador, quando fazem parte do ciclo das dores, transformações e restaurações. Dores, lágrimas, cortes, cicatrizações, espécies de tatuagens que permanecerão. E está tudo bem.

De forma mais explícita ou oculta a questão permanece: o que de fato vale a pena, cheirar e regar as “flores vivas”? ou permanecer com a sensação de que elas podem ser eternas pelo fato de que foram compradas por um alto custo numa loja de departamento? Qual encontro vale mais a pena? O que você percebe e pode encarar a pessoa sem filtro, com todos os seus impasses e dificuldades ou os “filtrados” pelo Instagran? O que vale mais a pena para você? Alimentar e contemplar os aspectos falíveis e transitórios ou alimentar a ilusão de uma vida artificial?

A beleza incomparável do natural

Eu permaneço com a resposta de Freud e com a da Natureza, com seus ciclos, suas estações, seus movimentos. As flores de plástico não morrem, mas não cheiram, não abrem, não murcham, não me recordam a grandiosidade que há nisso tudo.

Freud, sempre oportuno, nos disse que: “O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos.

Quanto à beleza da natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna […] Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela”. (FREUD, 1916[1915]/1996, p.318)

A minha escolha continua sendo pelas flores vivas. As flores de plástico não morrem porque não têm vida. Beleza sem vida vale alguma coisa? Que possamos chorar pelo que vale a pena, não por ter “despedaçado as flores que estão no canteiro”.

Referências:

FREUD, S. (1916 [1915]). Sobre a transitoriedade. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
MIKLOS, P., BRITO, S., GAVIN, C., BELLOTTO, T. Flores. Õ blésq blom. WEA, 1989.

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