O início, o fim e o meio das relações afetivas: reflexões a partir dos ciclos de vida-morte e vida no amor

Há tempos somos bombardeados por manifestações musicais, literárias, cinematográficas, poéticas e religiosas que associaram histórias de amor aos tão sonhados desfechos felizes. Acreditamos por meio dos equívocos construídos subliminarmente, que as relações acontecem numa espécie de sequência, como se cada história fosse um único script, que a gente identifique o início, o meio e o final, numa sequência por vezes previsível.

A partir da Mulher-Esqueleto, de Clarissa Pínkola Estés, somos convocados a pensar nos vários ciclos presentes num único relacionamento.

E de alguma forma refletir sobre a interessante possibilidade de vivenciar diversos finais, vários ciclos que se concluem numa mesma história. Segundo a autora, “dentro de um único relacionamento amoroso existem muitos finais” (ESTÉS, 2018, p. 188), o que explica parte do desafio da empreitada amorosa.

Os ciclos de vida-morte-vida no amor

Entendo que é preciso algum esforço para conceber esse pressuposto, mas também acredito que ele possa trazer mais leveza para o cotidiano. Pensar que a ideia de renovação, de fechamentos de conflitos e mudanças de status dentro de um mesmo relacionamento pode contribuir muito com a responsabilidade psíquica de cada um dos envolvidos.

No entanto, também será inevitável aceitar a tarefa de desemaranhar cada nó que venha a ser identificado, sobretudo em aceitar que nada esteja de fato assegurado. Há sempre algo mais, haverá sempre alguma coisa por fazer. Alguns nós só serão vistos depois que aqueles outros nós mais superficiais forem se desfazendo. Alguns desaparecem, outros se revelam, enaltecendo nosso tempo de nos ver e de re-ver nossas escolhas.

Contudo, para acolher esta proposta dos ciclos de vida-morte-vida no amor, precisamos de algum modo rever nossa noção de morte e de finitude. Precisamos nos dar conta de que a possibilidade de transformação, revitalização e ressignificação, que são conceitos tão importantes, não se dão desconectados da finitude.

Será preciso deixar ir o que não faz mais sentido, para que outras passagens possam se abrir e outras experiências, diferentes, mais elaboradas ou mais minimalistas possam surgir. Cada caso será sempre um caso, em relação a proposta de transformação, já que ela não condiz com o imaginário das idealizações, mas faz parte do processo de amadurecimento. Fato é que não será possível elaborar e transformar repetindo o mesmo, vivendo o já vivido e fixado nas mesmas dores. Eis o desafio, tão bem apontado por Freud desde os primórdios da Psicanálise.

Sobre as relações afetivas

Voltando aos relacionamentos em si, Estés (2018) também nos lembra que no âmbito das relações amorosas, muitas experiências não são concomitantes, que elas acontecem numa certa ordem, respondendo a alguns ciclos. Os primeiros encontros não podem ofertar o que demanda tempo para se consolidar, por exemplo.

Nessa espécie de sequência (sempre relativa e provisória, subjetiva a cada um), os diversos ciclos vão se finalizando dentro de uma mesma história, com a ideia de transformação atravessando o processo. Quando se pensa em momentos de falta de confiança e dúvidas recorrentes, temos uma boa noção do que se trata. É a velha noção de não apressar o rio, pois ele tem um ritmo próprio que depende de seus leitos e de suas águas. Jamais será o nosso tempo, ou aquele que idealizamos.

Nessa perspectiva, do ponto de vista do custo energético, os relacionamentos darão sempre algum trabalho. É preciso uma boa dose de trabalho psíquico para encarar os ciclos de vida-morte-vida, para elaborar os lutos e ter energia para as novas possibilidades advindas das transformações. Sobretudo, é preciso muito trabalho para discernir, e talvez esta seja a tarefa mais desafiadora: discernir o que investir para viver, reviver e renovar e o que é preciso deixar morrer. 

A proposta da Mulher- Esqueleto de Estés (2018), vem justamente tentar nos despertar para a importância da presença da morte na vida. Para a importância da força necessária utilizada no ato de caminhar ao lado de alguém, enquanto se caminha também em companhia da finitude, que sempre estará por perto, ainda que negada. No entanto, quando a finitude é acolhida, podemos aprender e crescer com ela.

Ao invés de excluí-la ou desconsiderá-la, ela pode ser convidada a integrar esta terceira ponta triangular da relação. Sem sua ajuda, será difícil atravessar as crises de confiança, de dúvidas e ressentimentos.

Com ela, será possível reconhecer com mais clareza e validar a hora de ir e o momento de ficar. Afinal, a própria Clarissa nos diz que sabemos mais sobre o amor justamente quando, apesar de muitas partes de nosso corpo nos mandar fugir, decidirmos ficar. 

Ficar e desemaranhar o esqueleto. Passar pelo enfrentamento, pelo desânimo, pelo medo e pela lágrima.  Mas a essa altura já saberemos: “O amor tem seu custo. Ele exige coragem” (ESTÉS, 2018, p. 165)

Referência

ESTÉS, Clarissa Pínkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

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