Presenças, ausências e a inexorabilidade do tempo

O ano de 2020 (pelo jeito o ano de 2021 segue a mesma tendência), deu uma impulsionada a repensar sobre estas três palavras: presença, ausência e tempo. 

Este texto é um convite para refletir sobre quem está presente , independente de estar perto ou longe e também sobre como ou com quem passamos o tempo. Ou, melhor dizendo, como gostaríamos de ter vivenciar e compartilhar o tempo. Estas questões também me remetem à um filme que durante a pandemia, tenho pensado muito no enredo, chamado “O Sr. Ninguém”.

O filme “O Sr. Ninguém”

Nesta trama, assistimos duas versões para cada um dos mesmos fatos significativos da realidade do protagonista, mas não temos como saber o que realmente foi a realidade vivenciada e o que ele imaginou que teria sido(ou foi uma lembrança encobridora), caso tivesse acontecido de outra forma. Por exemplo, se ele tivesse se casado com esta ou aquela pessoa, se tivesse passado a vida com o pai ou com a mãe.  Sabemos que ele está no final da sua jornada de vida, revendo e repensando sobre o próprio tempo, suas experiências e companhias.

Fato é que assim como o Sr. Ninguém, diante da possibilidade de morte potencializada por estes números assombrosos que temos nos deparado nesta pandemia, costumamos levantar alguns temas assim. Repensar a nossa existência, as nossas experiências e escolhas. Como teria sido se eu tivesse ido…

Como teria sido se eu tivesse insistido? E se eu tivesse feito outras escolhas?  Nunca saberemos. Há quem mantenha ilusões e nostalgias, de possibilidades sem em aberto ( ou impossibilidades?). Antecipamos o nosso próprio “Sr. Ninguém”?

Independente da idade cronológica, estamos sempre em tempo para avaliar e reavaliar algumas decisões, ao menos em alguma medida para decidir se precisamos ou queremos de fato vivê-las.

Há situações que nos fazem querer permanecer nelas e correr delas, ao mesmo tempo, na mesma proporção. É a velha história do prazer-desprazer, que nos traz uma gratificação afetiva ao mesmo tempo que um mal-estar. Vontade de fugir e de ficar. Mas afinal, como saber a hora de ficar ou de validar a permanência? 

Essa dúvida me remete à fala de Clarissa Estés: “Não existe meio que nos permita ir e ficar ao mesmo tempo”. Ela fala isso justamente num capítulo em que precisamos nos reconectar com nossa intuição e enfrentar alguns processos que costumam ser dolorosos ao nosso crescimento. 

Para ela, temos uma espécie de jornada, com várias tarefas a serem cumpridas, na qual precisamos de tempo, enfrentamento e de acesso aos nossos conteúdos inconscientes. Não saberemos lidar com as adversidades prontamente, nem poderemos aceitar tudo, mas há experiências que serão transformadoras, ainda que dolorosas.

O desafio é bancar seus efeitos. E a sensação mortífera da repetição, para inaugurar a diferença. As diferenças serão bem vindas, o inédito, o que pudermos construir para desenvolver um novo direcionamento para nossos desejos.

Muitas situações nos permitem manter flexibilidade e permanência num estado de indecidibilidade provisória. Mas chega um momento em que nos deparamos com uma espécie de encruzilhada, com caminhos de certo modo antagônicos ou inconciliáveis e aí sim, não há como seguir com a ilusão de dois caminhos concomitantemente.

encruzilada

Ir por um significa jamais saber o que haveria no outro, naquele exato momento em que você não o percorreu. Sim, é possível se arrepender, voltar atrás e pretender rever lá na encruzilhada o caminho tomado, mas o tempo… este já é outro. Assim como a vida de Sr. Ninguém, um caminho é um caminho, é único e vem numa espécie de pacote: com as alegrias, os aprendizados, os medos, os efeitos… Não há percurso sem efeito.

As estações mudam, as flores florescem, murcham, as folhas caem, algo acontece. Você já não é o mesmo que estava na encruzilhada antes de ter escolhido o outro caminho, se arrependido da escolha e tentado novamente.

Os impactos do tempo

Renato Russo já havia cantado isso também em Por enquanto: “Mudaram as estações, nada mudou, mas eu sei que alguma coisa aconteceu”. E o que será que aconteceu? A vida aconteceu. Você aconteceu. Estamos acontecendo, o tempo todo.

Como em “O Sr. Ninguém”, só teremos a proporção destes impactos a posteriori, quando algo já tiver nos distanciado da situação. Quando pudermos falar a respeito, ver com menos envolvimento, menos ilusão, expectativa ou mágoa, ver com clareza, elaborar de fato.

Para isso precisamos de tempo também. De distância e também de proximidade – física e afetiva, não necessariamente da mesma pessoa. 

Falando não parece tão difícil, pois o tempo é relativo e estamos por aqui para aprender, essas escolhas que também são atravessadas pelo sujeito do inconsciente, fazem parte. Porém, mas, todavia, entretanto…

Neste percurso existem outras vidas que compartilham tempo e espaço umas com as outras; envolvidas, preocupadas, negligenciadas ou amadas.  Como elas se incluem ou se excluem nisso? Como nesse movimento de ir ou ficar cada um lida com os desdobramentos emocionais que causa no outro?

Estamos num tempo em que não é mais possível manter a ingenuidade de que a responsabilidade psíquica, individual, não é afetada e não afeta a responsabilidade coletiva. 

A expressão “cada um por si” nunca nos foi tão violenta e infeliz.

Estamos todos conectados de algum modo, o COVID está ai para não deixar essa dura realidade passar ilesa. Ainda que o compartilhamento seja um vírus, quando você desrespeita o outro, quando desconsidera o coletivo, você atrapalha não só o seu caminho. 

Tenho ouvido muito algumas expressões como “responsabilidade afetiva” e “lei do retorno” ultimamente. Penso que aqui o objetivo não é encontrar um nome em si para definir este processo, mas debatermos modos de sermos mais responsáveis psiquicamente. E lembrar que de alguma forma os efeitos estão mais imediatos, pois as conexões se estabeleceram numa outra configuração a partir dos riscos de contaminação.

De alguma forma, em alguma medida, da nossa posição de sujeito, somos responsáveis, já nos disse Lacan. 

Uma questão importante, que penso que a ética nos convida a fazer neste momento, é sermos claros.  E a clareza precisa ser de cada um consigo mesmo e de cada um para com os demais.

Em tempos em que não temos leitos nos hospitais, vacinas nem para as pessoas mais vulneráveis e que o risco da morte aproximou a todos independente das suas diferenças, a responsabilidade com a palavra, com os afetos, presenças e ausências tornou-se ainda mais significativa.

São tempos de menos ilusões e mais validações do que realmente importa. Tempos que como já disse Drummond, “em que os ombros suportam o mundo”. 

Assim, diante do peso nos ombros de todos, a dignidade e a humildade se tornam tão especiais.

É preciso coragem – para permanecer ou de se retirar; seja da vida do outro, de um curso, de um trabalho, de uma chamada online, de um encontro virtual que não lhe faz sentido naquela ocasião, de tudo que aumenta ainda mais o peso nestes ombros.

Há presenças que nos fazem companhia à distância, que dividem este peso conosco, por uma mensagem, um áudio, um vídeo, um meme compartilhado. Há novos modos de se perceber as presenças e ausências.

Há presenças que nos ajudam a seguir na pandemia, apesar de todo o caos que ultrapassa o corona. Que se presentificam com palavras, olhares e gestos, independente da distância. Também há aqueles que mesmo pertinho não comparecem, pois por alguma razão, não estão ali. Sim, há presenças ausentes também.

Clinicamente, ouvimos muito isso todos os dias e até sentimos via contratransferência estes efeitos. Precisamos avançar para além dos pesos nos ombros, do desperdício de tempo de vida e das presenças ausentes.

Nos afastar do peso além do necessário e não intoxicar ainda mais nossa humanidade. Ainda temos algum tempo, mas já não é mais como na música Tempo perdido “temos todo tempo do mundo”, tanto tempo assim, 2020 nos ensinou e 2021 continua nos ensinado, que já não temos.

Agora é importante cuidar para não “matar o tempo”, pois como já nos advertiu Machado de Assis, (quando) “matamos o tempo, o tempo nos enterra”. Por mais conexões, mais presenças, mais aqui e agora.

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