Novos cenários e perspectivas para os efeitos do “Complexo de Cinderela” no século XXI

Há tempos venho acompanhando discussões em torno das histórias de contos de fadas.

Entendo que as versões narradas podem ser ou não fiéis às histórias milenares, que enaltecem os aspectos fortalecedores, as mensagens subliminares de reconhecimentos e resoluções para os conflitos psíquicos.

Obviamente, não podemos desconsiderar o aspecto da passividade que possa se promover a partir de uma narrativa na qual uma menina protagonista é orientada a esperar com passividade e paciência, que logo mais será “salva” por um príncipe.

A partir do surgimento deste príncipe, tudo parece supostamente solucionado e a vida da protagonista estará configurada numa áurea de felicidade por via de acesso ao casamento, este formato de domesticação do amor romântico.

Sabemos que este suposto final nada mais pode ser que o início de um novo ciclo, que traz inúmeros processos de aprendizados e desafios e não cabe neste formato happy end, não se trata de um ponto de chegada, mas de um fluido acontecer, atravessado por um cotidiano e marcado por uma história de vida.

Na contemporaneidade temos personagens como Valente, temos Malévola, temos os filmes de grande bilheteria que não terminam mais num formato de “felizes para sempre”, como por exemplo em “Como eu era antes de você”.

Nessas três películas que menciono, todas trazem outras saídas para as mulheres, se contrapondo à passividade e à busca pela “solução” do seu desamparo constitucional em outras pessoas.

Esse príncipe idealizado e que não corresponde aos homens reais da vida cotidiana, sobretudo por estas expectativas criadas, não são o objetivo destas personagens que podem inclusive, proporcionar um final feliz a si mesma, sentada sozinha num café em Paris, onde escolheu estar. Ou ainda, insistir no direito de seguir a própria vida, sem precisar compartilhá-la amorosamente, como decidiu Valente.

Sobre o Complexo de Cinderela

Por isso, acho válido relembrarmos o clássico e ainda tão atual livro de Colette Dowling, cuja tese sustenta que o “Complexo de Cinderela” consiste numa espécie de “rede de atitudes e temores profundamente reprimidos que retém as mulheres numa espécie de penumbra e impede-as de utilizarem plenamente seus intelectos e criatividade.

Como Cinderela, as mulheres de hoje ainda esperam por algo externo que venha mudar sua vida.” Colette nos lembra que muitas mulheres ainda aguardam a chegada de seus príncipes, como se pudessem na sequencia, delegar a outra pessoa, o comando e a direção de suas vidas.

Gosto de pensar esta noção de Complexo de Cinderela com as personagens Carrie e Charlote, da Série Sex and the City.

Mulheres inteligentes, independentes e bem sucedidas, às voltas com recorrentes encontros amorosos curiosos e por vezes bizarros, repetidos no afã de encontrar “o cara”.

Espécie de ideal de “salvação” que vem de fora, sobretudo deste homem fictício e idealizado na figura de um príncipe (des) encantado, o lance dos sapatos é bem interessante de pensar como metáfora, em Cinderela e nesta série também.

Contudo, acho que fica um tanto ambivalente o que representam estes sapatos em Sex and the city, afinal. Por um lado, a espera não é passiva, já que Carrie, encantada por sapatos, já comprou o equivalente ao valor monetário de um apartamento.

Embora ela faça as próprias escolhas e não precisa bancar o lugar de princesa que espera essa sapatinho encaixar certinho, sabemos que ela “agarra” num sapatinho azul bem específico, envolvido no seu casamento que não acontece. Haveria então um resquício deste efeito de Cinderla em Carrie, justamente ela, que parece tão “resolvida”, será…

Para Carrie, em especial, seu eleito “ Big” se torna a encarnação deste príncipe que na verdade é tão realista ao ponto de desistir do casamento minutos antes.

Bem como as coisas são, os homens da série também são reais, criam expectativas, se atrapalham, se apaixonam, têm medo e tudo mais que se possa imaginar.

Sex and the City teve grande alcance no público feminino, com seis temporadas e dois filmes.

Acredito que esta série tem a habilidade de reunir os resquícios destes aspectos do imaginário feminino, nestes processos de sedução da “mascarada”, de ser tudo para o outro ao mesmo tempo em que busca amparo neste outro, sobretudo nos homens.

Assim, concomitantemente as personagens nos fazem rir dos desencontros cotidianos e criam espaço para discussão e revisão de tudo isso que nos afeta, direta ou subliminarmente, sem deixar de enaltecer o que penso ser mais interessante que a série veicula: a força da coletividade feminina, que é tão potente nestas quatro amigas.

Uma espécie de bálsamo para todos esses resquícios que nos afetam e ainda não elaboramos, embora sejamos gratas à todas as mulheres que vieram antes, e começaram o trabalho por nós.

Voltando em Colette Dowling, a questão que reverbera para mim diz de como as mulheres embarcam ou desenvolvem este complexo.

A autora nos provoca a refletir sobre uma espécie de mensagem subliminar que nos promete uma espécie de recompensa ao silêncio, à submissão e ao bom comportamento.

Basicamente, ao nos percebermos frágeis, restaria a passividade e a espera, desta suposta salvação que chegaria como espécie de prêmio, trazida por este ser-fora-do cotidiano tão bem representado pelo “Big”, este homem enigmático e bem sucedido, mas que ninguém sabe como chama, nem o que ele faz exatamente.

Como nos príncipes das histórias é um lance meio mágico, que ninguém sabe explicar seu aparecimento. No caso de Big, suas próprias razões também não.

Na prática, nesta semana em que tanto se falou sobre a mulher e o feminino, acho que é hora de parar para avaliar se conseguimos este árduo processo de conciliar tudo que nos foi atribuído. Se precisamos disso e principalmente, se é isso que queremos.

Se estamos inseridas em relacionamentos onde existe equilíbrio entre idealização e realidade, entre dar e receber e sem desperdício de energia,de potencial e se não estamos a desperdiçar nós mesmas, sobretudo.

Não só nossos direitos parecem estar sempre ameaçados de alguma forma, mas nós mesmas quando nos deixamos de lado para buscar esses finais felizes de histórias que ouvimos. Como nos lembra Colete:

 “Nós sabotamos nossa própria originalidade.  Andamos em segunda – evitando as marchas mais potentes que possibilitam maior velocidade – como se tivéssemos sido programadas para fazê-lo. E na realidade o fomos”. 

Em busca da superação

O desafio está sobretudo em encararmos nossos registros inconscientes que permanecem enquanto conciliamos nossos desejos e projetos possíveis, dando espaço a novas criações e invenções.

Enquanto nos enveredemos na ideia de salvarmos a nós mesmas, as forças de compartilhamento podem contribuir com a desestabilização da ilusão de que a salvação está fora.

Que massacrar o amor próprio para criar um lugar para o outro pode ser não só fadado ao fracasso, mas também correr o risco de que isso possa retornar para nós no formato de fúria e intolerância, o que vai na contramão das parcerias (par-seria possível?) pautadas em reciprocidade e respeito.

Não importa qual sapatinho se espera, estamos em tempo de buscar por ele, pagar por ele ou aceitar de presente de uma boa amiga.

Separando o príncipe do sapatinho que ele traz, há mais chances de encontros com pessoas reais.

Sapatinhos, anéis, casas ou o que quer que seja o presente de um “príncipe encantado”, pode ter um alto custo energético, e isso não costuma ser percebido no embrulho.

O sapatinho da cinderela pode envolver uma entrega física, psíquica ou custar a própria vida. Sem a metáfora do encaixe perfeito do sapatinho somos mulheres reais como Carrie e suas amigas.

Mulheres que buscam reciprocidade, compartilhamento e risadas sinceras, mais que finais felizes.

Na dúvida, sabem que tem um colo das amigas antes de mergulhar de volta no mundo lá fora. Sim, existe vida lá fora, muita vida. Mas a nossa relação com o desamparo, a gente resolve internamente.

Com a ajuda das amigas e das analistas.

Referências

DOWLING, Colette. Complexo de Cinderela. São Paulo: Melhoramentos, 1995.

LOVELACE, Amanda. A princesa salva a si mesma neste livro. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

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