Transformações e transposições por meio de contos e histórias

Por que algumas histórias são atemporais e ultrapassam barreiras geográficas?

Para mim, desde que me entendo por gente li o mundo por meio de histórias.

Cresci achando a escola lenta, não via muito sentido no ritmo em que os conteúdos eram ensinados.

Já as histórias… Elas me transportavam, num outro ritmo, para um outro tempo.

Sou muito grata por ter crescido numa casa cheia de livros e por ganhar com frequência histórias em quadrinhos do meu pai.

Algumas eu não entendia prontamente, em outras eu era provocada a refletir. Algumas eu decorava, passava horas seguidas concentrada na leitura.

Outras eu ainda não tinha tantos recursos cognitivos para entender a mensagem.

Comecei a ler aos 4 anos e sempre li com muita seriedade, por mais lúdicos que fossem os conteúdos.

As histórias sempre foram o meu refúgio e diversos personagens me apontaram muitas direções interessantes, por assim dizer.

Quando cresci continuei apaixonada pelas histórias.

Não entendia o incômodo dos meu colegas quando tínhamos que ler Machado de Assis ou Camilo Castelo Branco, no ensino médio.

Eu mergulhava nas histórias e para mim, elas eram a melhor parte das aulas.

Quando comecei a estudar Psicanálise, um dos primeiros livros que conheci foi “A Psicanálise dos contos de fadas”, do Bruno Betteilheim.

Mais de vinte anos depois ainda carrego o meu exemplar, embora tantos outros tenham surgido nesse percurso; “Fadas no divã”, “A Psicanálise na Terra do Nunca”, “Freud e o estranho – contos fantásticos do inconsciente”, são alguns dos meus favoritos.

Recentemente, me encantei com Mulheres que correm com os lobos e senti que estas histórias em especial, carregam mensagens mais condizentes com meu momento de vida, bem como com o momento de tantas mulheres mundo afora.

Sinto que estas histórias, em especial, tem um momento oportuno para que quem lê possa se conectar com elas.

Mas afinal, como as histórias nos afetam e o que ensinam?

freud e o estranho

Sem pretender responder totalmente à esta pergunta, pois acho que os efeitos de desdobramentos das histórias não cabem em palavras, vou me arriscar a algumas colocações.

Algumas histórias tem um ritmo e um acalento próprios, são capazes de nos fascinar e nos possibilitam entrar em contato com o que desconhecemos de nós.

Outras, deixam verdadeiras lições, como espécie de alerta para o que pode nos acontecer se investirmos muita energia em nosso potencial destrutivo.

Várias outras nos lembram de nos conectar conosco, com a natureza, com quem amamos. Tem história que nos ajuda a encontrar a nossa turma, ou a valorizar a nossa ainda mais, se já tivermos uma.

Podem também nos recordar o valor da sororidade, da reciprocidade, de sabermos que não estamos tão sós. Não mais.

Há aquelas simples, mas tão simples como a simplicidade da vida que a gente tanto complica: no final das contas, não é difícil saber o que realmente importa. 

Por vezes, as histórias nos afetam subliminarmente, o que penso ser o mais encantador, ao mesmo tempo que muito potente.

Há um quantum de inexplicável, de ser sentido e elaborado, num outro plano, que não o da razão.

Penso que as histórias ativam mecanismos adormecidos de associação, o que nos faz experienciar a comoção, a identificação e a reviver ali junto aos personagens, nossas angústias, medos, alegrias e tantas emoções.

Sobre isso, Tavares (2007), nos lembra que fantástico e inconsciente, são vasos comunicantes.

Há sempre um quê de fantástico nas produções do inconsciente, basta pararmos para olhar um pouquinho.

Foi levando em conta a palavra unheimlich, que Freud sugeriu haver uma diferença entre o termo reconhecido na literatura e o vivenciado no cotidiano.

Essa estranheza familiar que nos ronda, é só parar para dar uma olhadinha e constataremos que ela está por ali.

Histórias nos conectam com nosso arcabouço subjetivo e nossa simplicidade (e complexidade) cotidiana, dizendo sempre algo do contemporâneo por mais antigas que sejam. Não importa de qual século ou milênio venha sua origem.

O importante é se faz algum sentido para nós, bem como, o que faremos com elas.

“Nossas histórias favoritas acabam sendo fontes de inspiração e identificação, refinam ou embrutecem nossa sensibilidade, nos ampliam ou cerceiam os horizontes, ajudam a penetrar na realidade ou a evita-la, sendo, portanto, decisivas para o que nos tornamos”. (CORSO, 2011, P. 13)

Por que algumas histórias são difíceis ou não fazem sentido algum?

Quando recusamos ou tememos entrar em contato com alguma história, isto também pode sinalizar para algo significativo, mas que não está em tempo de ser visto. 

Na verdade, quando lemos ou escutamos contos e histórias, utilizamos nossos próprios recursos e mecanismos de defesas.

Percebemos e interpretamos do nosso jeito, no nosso tempo. Daí a necessidade de perceber nossa disposição psíquica para entrar em contato com alguns temas.

Além disso, não é por acaso que algumas histórias nos causem estranheza, o unheimlich freudiano, que nos é ao mesmo tempo familiar e estranho.

O desafio está em perceber que talvez justamente ali, aponte para onde temos mais necessidade de nos demorarmos um pouquinho.

Na aversão e no incômodo pode estar escondido um portal. Um dia será tempo de atravessá-lo.

E para finalizar, lembro uma passagem de Mulheres que correm com os lobos, quando Clarissa sabiamente nos sugere:

“As instruções encontradas nas histórias mostram que o caminho não terminou, mas que ele conduz as mulheres mais longe, e ainda mais longe, e ainda mais longe, na direção do seu próprio conhecimento” (ESTÉS, 2019, p.19)

Referências:

CORSO, D. CORSO, M. A Psicanálise na terra do nunca: ensaios sobre a fantasia. Porto alegre: Penso, 2011.

ESTÉS, C.P. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 2018

Freud e o estranho: contos fantásticos do inconsciente /organização e seleção Braulio Tavares; contos de E.T.A Hoffmann [et al.] Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.

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