Como nossos pais

Outro dia fiz uma enquete no Instagram e descobri que a maior parte das pessoas que se manifestou acredita que já não “somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.

Uma boa parte acredita que sim, mas teve quem se manifestou dizendo que não era “bem assim”, que não necessariamente vivemos ou não como eles, que existem variações.

Teve quem disse que “tem a coluna do meio”.

Não foi só pelo fato ter assistido recentemente “Como nossos pais” nem por gostar tanto de escutar Elis, Maria Rita e tanta gente cantando esta música que divulguei esta pergunta, foi mais no sentido de promover a reflexão e provocar um debate.

Venho refletindo há anos sobre como as pessoas resistem a perceber e admitir algumas semelhanças com seus pais. Para tanta gente, se dependesse de escolha consciente seria uma espécie de “decisão”, mais frequentemente a de não parecer, somente.

Contudo, na prática não é tão simples, e não é difícil verificar a energia investida nesses processos de insistir tanto em ser diferente, até mesmo em brigar com a mesma intensidade com que o outro briga, tentando não parecer com este outro.

A questão é complexa, não se trata de escolha consciente.

Sobretudo por estas supostas escolhas conscientes, por meio das quais muita gente insiste em afirmar nada parecer com os pais, é que vemos evidenciar ainda mais os tais aspectos criticados-projetados, que geralmente não percebem nelas mesmas.  

Isso me remete à fala de Dunker (2019), quando nos diz que as vezes esperamos que o outro interrompa uma repetição que nós mesmos estamos a repetir (já que inconscientemente estamos a contribuir com o processo) e acrescenta: “É como alguém fazendo caretas diante de um espelho e achando chato o que vê pela frente” (DUNKER, 2019, p. 201)

Percebo que na busca por produzir a diferença concretiza-se ainda mais a semelhança. Pensando com os pressupostos freudianos, não temos como escapar dos nossos processos de identificação com nossos pais, ou quem quer que tenha feito as funções parentais em nossas vidas.  

Sobretudo em alguns pontos mais específicos, como as identificações na fase do Complexo de Édipo, estamos sim, inseridos numa certa trama psíquica. Gosto muito de pensar com Freud porque ele também nos apontou saídas, não só “explicações”.

Na verdade, algumas questões “Freud explica” sim, mas deixa para nós a responsabilidade do que fazer com a explicação depois (ainda bem, ou não seria Freud).

Ainda assim, precisamos lembrar de que parecer não é destino, condenação ou karma, nem é porque “filho de peixe peixinho é”.

Não é, não precisa ser, felizmente. Em Psicanálise trabalhamos com a perspectiva de invenção, de produzir e inaugurar diferenças nas repetições, o que geralmente demanda um demorado trabalho psíquico.

E quando termina o trabalho? A análise é terminável ou interminável?

Tema para outro texto, mas fiquemos com uma proposta das mais interessantes “intenções” da análise, que é justamente repetir menos, cada vez menos e com alguma diferença – e mais responsabilidade psíquica, ainda que as repetições não possam ser cessadas completamente.  É a proposta freudiana: “Recordar, repetir e elaborar”.

Sobre o filme Como Nossos Pais

Como nossos pais, filme de Laíz Bodansky traz um enredo muito interessante para pensar sobre essa questão.

No afã de fazer diferente, a repetição continua atuante, ainda que num outro formato.

Entrar em contato, falar sobre e lidar com a finitude podem contribuir com novas configurações e de certo modo possibilitar espaço para a diferença, e é com isso que essas personagens contribuem.

Mostrando de modo bem realista o cotidiano das relações pais e filhos, com foco na relação mãe-filha, bem como as recomposições de novas famílias, o filme Como nossos Pais é uma boa pedida para pensar no cotidiano, sobretudo por ser um filme nacional, literalmente, falando a nossa língua.

As mulheres nas fachadas de “dar conta de tudo”

A protagonista Rosa, uma mulher de 38 anos, desejava escrever peças teatrais mas se ocupava com escritas de folders de cerâmicas de banheiro, em conflito com seus princípios feministas e o modo como estava sua vida.

Sentia-se uma mulher exausta há 15 anos e admitia: “Eu sou pura fachada, nunca banco meus pensamentos”.

Insatisfeita em diversos âmbitos, Rosa precisa lidar com uma revelação que a estremece, enquanto lida com o casamento, o trabalho, a maternidade, a proximidade de perder a mãe e ainda: “os fantasmas do meu pai, não!” (este é um dos melhores atos falhos em filmes, na minha opinião).

 Como nossos pais lida com a questão da sobrecarga proveniente das múltiplas funções em que a mulher abarca na nossa cultura.

Conforme diz Rosa: “Eu não quero mais ser uma mulher que dá conta de tudo. Eu não dou conta de tudo”.

Desde as divisões das tarefas domésticas até a certa “naturalização” que se atribui às traições masculinas, o filme Como Nossos Pais coloca em debate as relações maritais, mentiras, ocultações familiares e os papéis de gênero.

Destaco alguns pronunciamentos das personagens para endossar essas argumentações.

Sobretudo o fato de Clarice (mãe de Rosa) acusar a filha de ser “muito dura” com as próprias  filhas e não perceber que Rosa somente repetia a aspereza de Clarice para com ela: “eu devo ter alguma memória de alguém que foi muito duro comigo!”.

Tudo isso é dito, o que é bem interessante. Aparentemente, as personagens de Como nossos pais são mais antenadas emocionalmente para estas questões, ainda que por vezes não saibam muito como sair desta situação.

Vemos a repetição também na escolha das parcerias amorosas; Dado, marido de Rosa, assim como Homero, o pai da personagem, é super engajado num discurso interessantíssimo, mas que o desenrolar nos mostra incongruente com as ações de ambos.

Assim como seu pai, seu marido é aquele que fala bonito, mas que a deixa “a ver navios” quando a ação/ realização é necessária. As relações extra conjugais também guardam semelhanças nas repetições, de todas as personagens.

O filme Como nossos Pais tem vários outros pronunciamentos super interessantes para que se reflita a questão, algumas que destaco aqui para compartilhar com vocês:

“A minha mãe esqueceu de me avisar e eu demorei muito para aprender” (Clarice); Meu pai era assim, meu avô era assim” (pai de Rosa) e ainda: “Um segredo muito antigo que aprendi com minha mãe, que aprendeu com a mãe dela e que agora vou te ensinar” (Rosa).

O que inaugura a mudança e a diferença?

A relação de Rosa e Clarice começa a mudar quando a finitude dá a sua aparição: diante da morte iminente, Clarice compartilha os segredos ocultados, ajuda a filha entender que cada um tem suas próprias razões para suas decisões e vai na companhia da filha escolher o último par de sapatos que comprará diante do avanço de sua doença.

Os calçados, que nos auxiliam no nosso caminhar e se contrapõe aos sapatos irreais das princesas dos contos de fadas, são bem emblemáticos neste enredo, o que poderia até render outro texto.

Vou me restringir apontando o  all star que Rosa joga na lata do lixo, o “all star azul” da conexão com a música de Nando Reis e de sua experiência com Pedro e de quando ela aparecia como “adolescente – estagiária” no trabalho que lhe sugava as energias e com o qual Rosa não tinha conexão.

Jogar esse all star azul fora seria uma tentativa de sair da incoerência entre seus discursos e suas ações? talvez. Novos caminhos, novos calçados para a caminhada?

Fato é que o clima final é de renovação, de trocar o carro pela bicicleta, de assumir que o casamento não está bom como está e que algo precisa ser feito.

Tempo de colocar em palavras.

De encarar despedidas inevitáveis. De vida que segue. Igual, mas bem diferente.

E quanto à pergunta inicial, penso que podemos nos repousar no conceito de indecidibilidade e pensar que ao mesmo tempo que somos os mesmos também somos outros, vivemos da mesma forma e de uma forma diferente, concomitantemente.

Desde que não sejamos tão resistentes e inflexíveis a proposta é que possamos avançar, com menos sofrimento e mais saúde psíquica, principalmente.

Assista abaixo o trailer oficial do filme:

Referências

FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar [1914] In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

DUNKER, C. THEBAS, C. O palhaço e o psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.

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