Existe “crise da meia idade”?

Um dos meus temas favoritos das aulas de Psicologia do Desenvolvimento do adulto era a tal da “meia idade”…

Quando comecei a dar essas aulas eu tinha por volta de 30 anos, o que na ocasião significava distância de uma década até esse marcador de vida.

No entanto, ainda que bem abstratas na minha vida prática naquela ocasião, as propostas de Papalia et al (2006) sobre este assunto me interessavam bastante.

A ideia de pensar a meia idade como um momento de olhar para a frente e para trás, com a possibilidade de avaliação e “correção de rota” sempre me interessou.

Agora, mais de uma década depois, quando eu mesma vou revendo os meus traçados nesta trajetória chamada vida, convido à um olhar para seu próprio percurso, destino e bagagem.

Sabemos que do ponto de vista psicanalítico, o inconsciente é atemporal, não deixando de atualizar registros passados nem diferenciando o antes e o depois.

Os registros e afetos permanecem em nossos arcabouços psíquicos, parando ou não para olharmos para isso. Assim, sempre é tempo de rever o mal-estar camuflado na rotina ou massacrado pela tentativa de negação.

Nada desapareceu, mas talvez a gente pense que sim …

Dessa forma, considero possível um diálogo entre a atemporalidade sustentada pela psicanálise e a noção de meia idade da Psicologia do desenvolvimento.

Afinal, o que é meia idade?

A meia idade, refere-se ao período da vida que coincide com cerca de metade da expectativa de vida, circula em torno de 40 a 50 anos.

Quando penso nessa fase da vida, lembro da personagem Evelyn, de Tomates verdes fritos, que traduzia muito bem o quanto este período diz daquele momento da vida em que você se sente” muito velha para ser jovem, mas ao mesmo tempo, nova demais para ser velha”.

Recentemente descobri que essa frase vem da Clarissa Estés, no seu livro A ciranda das mulheres sábias.

É um momento em que a gente pode se interrogar sobre a metade da vida já vivida e acolher a outra metade que o futuro acena.

A proposta é rever o que de fato podemos considerar como “vida bem vivida”, como foi, o que foi aprendido, perdido, uma espécie de encerramento de um ciclo para que possa se pensar e viver melhor o próximo.

Contudo, há quem interprete que neste momento a metade da vida levou a fase mais interessante e promissora e adota uma atitude temerosa e pessimista perante o que está por vir, vislumbrando assim, pouca ou nenhuma possibilidade de reparação ou mudança.

Obviamente não há receitas, não há mapa da mina e nem estrada das pedras amarelas que possamos seguir.

Mas a perspectiva na qual nos inclinamos para avaliar a trajetória pode fazer muita diferença.

Ela pode inclusive, nos acompanhar quando a fase idosa chegar.

A meia idade e a psicologia

Nesse sentido, a escuta psicológica e psicanalítica podem ajudar bastante no processo.

Pode ser um jeito de dar uma parada e refletir um pouquinho sobre isso tudo, dividindo o peso com alguém imparcial e sem julgamentos.

Na perspectiva da Psicologia do Desenvolvimento podemos pensar que neste período da vida algumas pessoas irão viver a chamada “crise da meia idade”.

Apesar da palavra crise ser associada negativamente em nossa cultura, aqui ela tem um sentido interessante.

Ela dá aquela “sacudida” para que repensemos nossas próprias rotas, quais são as bagagens e suprimentos vamos levando nesta viagem chamada vida.

(Você escolheu seu roteiro pelo desejo? Ou carrega malas pesadas que na verdade são os desejos dos outros, segue a rota que traçaram para você? Pois é, sobretudo os mapas, e a configuração do seu GPS. Você traçou? Que caminho é esse? Você checou? Qual o meio de transporte você tem utilizado? Você merece um pouquinho mais de tranquilidade e conforto, será? Se durante estes questionamentos a crise aparecer, pode ser excelente).

A crise diz da angústia, este afeto que também funciona como um sinal. É o afeto que não engana, segundo Lacan.

Uma resposta à crise da meia idade

Então, a crise pode ser a porta que se abre para um reposicionamento, para um descanso, uma pausa nesses duzentos por hora que seguimos, carregando essas malas pesadas meio sem destino, ou como o Lulu Santos já cantou: (com) “tamanha pressa de chegar a nenhum lugar”.

Uma viagem sem conexão com a própria subjetividade, sem implicação subjetiva e carregando bagagens obsoletas pode se traduzir em energia desperdiçada, além de muitos outros desperdícios; de vida, tempo, experiências e tudo mais que merecemos.

Enfim… a crise chegará para algumas pessoas e  pode ser acolhida como uma oportunidade para fazermos diferente, para reconhecermos nossos incômodos e repensarmos nossos posicionamentos diante do mundo e de nós.

Para que essa crise não precise chegar lá na frente, quando tivermos centenárias revendo nossos percursos, pois ele já estará praticamente finalizado.

Na meia idade a crise é promotora de mudanças, ao menos tem um grande potencial para ser.

E estas reflexões se desdobram em muitos outros temas, conforme a proporção das crises e as bagagens; trocadas, perdidas ou obsoletas…

Metaforicamente podemos pensar: Profissão, trabalho, casamento, filhos, cidade que mora, casa que habita, amigos que mantém ou se vão.

Lutos não elaborados, dores alheias que carregamos como sendo próprias, situações tensas, violentas ou desrespeitosas em que permanecemos quando deveríamos nos retirar…

Cada um destes temas é assunto que rende outro texto, ou vários outros.

Para encerrar deixo um trecho do livro do Valter Hugo Mãe, que cai como uma luva por aqui:

“Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho […] Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas.

Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar sua companhia. Via-se metade ao espelho pois se via sem mais ninguém, carregado de ausências e silêncios como os precipícios ou os poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía” (MÃE, 2019, p. 19)

Que possamos nos inspirar e carregar malas mais sintonizadas com o que de fato precisamos e caminhos mais conectados com nossos desejos.

Sem esquecer das companhias amorosas; sejam na estrada, em parte do caminho ou nas paradas.

E tudo bem mudar a direção se nossas crises e nossas “metades” nos apontarem um outro destino.

Referências:

MÃE, Valter Hugo. O filho de mil homens. São Paulo: Biblioteca Azul: 2016.

PAPALIA, Daiane et al. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artmed, 2006.

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