Silêncios, pausas e algumas palavras sobre 2020

Penso 2020 como um processo psicanalítico, com todas as suas variações subjetivas, o famoso “cada caso é um caso”.

Até então não havíamos vivenciado um acontecimento partilhado por tantos, que permitisse uma certa demonstração das diferenças, sejam no modo de encarar o fato, de aceitá-lo, recusá-lo ou negá-lo.

Como todo processo, não pôde ser totalmente linear. Cheio de idas e vindas, de adaptações e desadaptações, de situações que até então veladas foram re-veladas.

O que não se faz sem angústia. E sem perder a noção do tempo, em certa medida. O que veio primeiro e o que se conecta com o quê, afinal? Um ano de associações (e desconexões) livres?

Percebo 2020 como um processo que nos convida inevitavelmente a um retorno ao passado, sem hipnose, sem divã e sem um analista suposto saber conduzindo…

Questionamentos que trazem muitas reflexões

Fato é que muitos questionamentos chegaram.

Da própria psique ou por influência de tantas outras experiências vivenciadas no formato online, que romperam as barreiras das distâncias físicas:

“O que me trouxe até aqui? O que me fez estar onde estou? Com quem estou? É isso mesmo? Quero prosseguir, quero trabalhar estas relações, quero rompê-las, suspendê-las, construir outras? Resgatar aquelas que se perderam?”.

São inúmeras possibilidades de questionamentos…

Como um processo psicanalítico, há quem “embarcou” no ano, atravessou as entrevistas preliminares e se deparou com a travessia da fantasia.

Sabemos que essa travessia não se faz sem angústia e que na análise se paga para sofrer em certa medida, justamente para não sofrer ainda mais por carregar registros que psiquicamente podem ser trabalhados e transformados.

O que obviamente não se faz sem dor e sem custo. Custo psíquico, sobretudo.

De investir no processo, esse famoso encontro consigo mesmo e com a sua verdade, sempre subjetiva e incompleta, senão provisória. E com a dor de des-iludir.

Lendo diversas postagens de hoje, que sugerem o famoso “balanço do ano”, percebo a complexidade do arcabouço humano: há quem ainda esteja revoltado, brigando, há teorias que beiram a paranoia no sentido da persecutoriedade do vírus.

Temos os negacionistas (estes nem Freud explica), há pessoas gratas com o que aprenderam, seja por meio de decepções, elaborações ou construções.

Vejo muitas diferenças. E o que vejo de ponto de conexão é o que temos de efeito da realidade, que até pode ser negada, mas só até certo ponto.

Um ano de perdas…

Há quem não “entrou em análise”, seja pela resistência, seja pela falta de transferência, seja porque não deu conta de arcar com os custos psíquicos.

E não podemos nos esquecer de todos aqueles que tendo entrado ou não “em processo” tiveram tantos lutos para lidar ao longo do ano.

Lutos reais, deste assombroso número de mortes que nos faz temer o barco sem rumo que embarcamos neste país, sejam os lutos das nossas ilusórias noções de controle sobre a vida e sobre o tempo

Houve também outras perdas que demandaram lutos: empregos, relações, remunerações e a forma de perceber as próprias vidas e o próprio planeta.

Os véus que recobriam um certo imaginário que adocicava a aspereza da realidade se rompeu e nossa fragilidade está escancarada, assim como nossas diferenças.

Não sabemos porque alguns resistem e outros sucumbem a este vírus, mas sabemos que somos sim seres vulneráveis, assim como as relações e as nossas supostas certezas.

Diante do que é tão denso e impactante, retomamos as nossas defesas: há quem enfrente demasiado e quem negue patologicamente, faz parte da nossa condição humana.

Estas reflexões me fazem retornar à Freud, em Sobre a transitoriedade, quando o psicanalista nos indagava sobre o valor da vida e em sua relação com o tempo, no qual afirmava que a transitoriedade da vida, a sua impermanência, pode aumentar ainda mais seu valor:

“o valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo […] uma flor que dure apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela” (FREUD, 1916/1996).

A impressão de que tudo passou muito rápido

2020 passou rápido demais para muita gente, foi “eterno” para tantas outras pessoas e foi concomitantemente vagaroso e acelerado para outras.

Fato é que como já cantou Caetano, Gal e Roberto Carlos na música Força estranha: “o tempo não para e no entanto ele nunca envelhece”.

Mas desconfio que a nossa percepção e relação com ele possa ter mudado neste ano de pandemia. Com o tempo e com a vida.

Ao menos para quem bancou o encontro com o analista, ainda que virtualmente.

FREUD, S. Sobre a transitoriedade. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

3 respostas para “Silêncios, pausas e algumas palavras sobre 2020”

  1. Eu reconheço o quanto este encontro com o analista e importante em nossas vidas . Por isso não abro mão da terapia , seja ela presencial ou virtual ( q foi um dos novos que experimentei em 2020).

  2. Pingback: Como nossos pais

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